Não somos a América. Não somos os riffs de guitarra de Chuck Berry ou a voz de Elvis Presley, não somos o ácido que pingava nos sonhos dos Doors ou dos Grateful Dead, ou a metralhadora elétrica de Jimi Hendrix. Não somos Ann Arbor e os Stooges, não somos a violência hardcore dos anos 80. Não somos Seattle nem Nova Iorque. Não somos a Inglaterra dos Beatles e dos Stones, os delírios progressivos e motores dos Yes ou dos Van der Graaf Generator, a revolta dos Pink Floyd e a aspereza sensual dos Led Zeppelin. Não somos o "no future" dos Sex Pistols, a nova vaga, ou a eletrónica mais rockeira que possa haver. Somos Portugal, e não temos, à escala que tem o mundo anglófono, verdadeiras estrelas rock dignas desse nome.

Quer dizer: não temos agora. Tivemos uma. Tivemos Zé Pedro, o homem que, em Portugal, personificou o rock n’ roll e a sua mensagem libertária como nenhum outro o fez em mais de cinquenta anos de canções à guitarra. Não foi o pioneiro, nem foi o seu último estertor. Mas foi o nosso ícone, num país onde os ícones parecem estar sobretudo arredados da música para o serem no futebol. Foi Zé Pedro, esse “Zé” dito de forma familiar e camarada como se com ele tivéssemos crescido. Foi Zé porque não poderia ser José Pedro Amaro dos Santos Reis. Porque a ponta da língua prefere decorar canções e não apelidos diversos.

Foi Zé Pedro - para nós, para os amigos, para a família, que mais parecem uma só coisa. E foi-o, sobretudo, a partir de 1978, ano em que formou os Xutos & Pontapés, da mesma forma que começaram tantas inúmeras bandas rock ao logo da história: através de um anúncio no jornal. Esse conto de fadas, quase hollywoodesco, gerou aquela que é a banda mais acarinhada do rock português - ou da música portuguesa em geral. O “X” como uma tatuagem que se desdobra sempre que os víamos, em palco, ou que os ouvíamos, fora dele.

Foi Zé e só tinha que ser Zé porque é esse o nome que mais representa Portugal, do Zé Povinho a Zé Mourinho. Foi Zé, assim batizado a 13 de setembro de 1956, na Estrela, de “pai militar não autoritário” e de “mãe militante-dos-valores-familiares” conforme se pode ler na sua biografia, escrita por uma de suas irmãs, Helena Reis. A biografia chama-se “Não Sou o Único” porque havia que fazer referência a um tema dos Xutos, mas poderia, tão simplesmente quanto isso, chamar-se “Sou Único”.

Fruto da sua ideia-génese, da aura beatnik ou do puro poder libertador de um mero acorde, o rock é um instrumento para a viagem. Uma viagem e um espírito de descoberta e conquista que conhece desde pequeno, fruto do trabalho do pai. Aos quatro anos, vai para Timor, vivendo aí durante algum tempo, “completamente à vontade”, como o dirá mais tarde em entrevista. Voltaria em 1963 para Lisboa, ainda passaria pela Guiné-Bissau  e fincar-se-ia na capital, começando a nascer, muito cedo, o “bichinho” pela música. Um chumbo à sua admissão ao Colégio Militar transformou-se numa ida para o liceu Padre António Vieira, e um novo chumbo, a francês, levou-o a trabalhar para o Diário de Notícias, onde o seu tio era diretor. Viu grupos como os Plexus e esteve presente na primeira edição do Cascais Jazz, onde Miles Davis foi rei e senhor e onde Charlie Haden foi preso pela PIDE.

O ícone rock, o amante do punk, o cabecilha de toda a seita elétrica do país

Adolescente irrequieto, beneficiou dos primeiros ventos novos surgidos com o 25 de abril. Pintou paredes, fez parte de grupos - quase gangs - como o Comité Revolucionário para a Independência da Malta da Encarnação (ou CRIME), chegou até ao Liceu Camões onde lhe disseram, numa daquelas ironias hoje em dia deliciosas, uma espécie de “incha!” reproduzido ad eternum, “você não tem jeito nenhum para a música”. Zé Pedro sorriria por último. Tal como há de ter sorrido quando, em 1977, partiu pela Europa de comboio. Esteve em Londres, pela Escócia, Alemanha, mas foi em França que deverá ter sido mais feliz, ao deparar-se com um festival de punk rock onde assistiu, in loco, a duas das bandas que ajudaram a fazer esse género: os Damned e os Clash. Uma experiência que mais vale citar abertamente:

“Quando voltei rapei o cabelo todo, meti um alfinete na boca, era o novo visual, até aí eu andava de cabelo comprido. Comprei uma viola elétrica… passava as tardes fechado no quarto: ouvia discos e sonhava com a ideia de um dia poder estar em palco” (“Conta-me Histórias”, Ana Cristina Ferrão).

Foi de facto o punk que o formou, assim como foi o punk que formou grande parte da cultura pop desde 1977 até hoje. Após regressar a Portugal, conheceu os Faíscas, nome charneira do punk em Portugal, e arranjou uma alcunha própria: “Podrezinho”. No concerto de estreia da banda, não resistiu e saltou para o palco, como que anunciando o que estaria para vir: Zé Pedro, o ícone rock, o amante do punk, o cabecilha de toda a seita elétrica do país. Os sucessivos chumbos na escola deram-lhe um doutoramento em rock n’ roll, matéria que foi ensinando ao longo do tempo.

Os Xutos & Pontapés nasceriam em 1978, com quatro membros: Zé Pedro, Zé Leonel, Tim e Kalú, depois de um primeiro ensaio, com Paulo Borges e sob o nome Delirium Tremens, não ter corrido bem. Ensaio atrás de ensaio, o primeiro concerto seria agendado para os Alunos da Apolo, no início de 1979. Pouco passava das três horas da madrugada do dia 13 de janeiro quando os Xutos, perante uma plateia melhor descrita como “pesada”, entraram definitivamente para a história e com apenas quatro temas tocados. “Quando acabámos não se ouviu nem uma palma. Nem um assobio. Não se ouviu nada. Eles não deem ter percebido absolutamente nada e o que é verdade é que nós também não”, contou, anos depois.

De facto, o punk - como qualquer outro movimento dentro do rock n’ roll - não foi entendido por muitos à partida. O que só torna a sua história de vida ainda mais extraordinária. A par de António Sérgio, que deverá agora estar a ter conversas intermináveis e invejáveis com Zé Pedro nesse lugar onde os Deuses do rock habitam depois de abandonarem o seu corpo terreno, é o guitarrista a grande figura do punk em Portugal. Muito antes, até, de qualquer single lançado.

O burburinho tornar-se-ia maior em 1981, com a edição de “Sémen”, primeiro single de “78/82” (o primeiro álbum dos Xutos) e que ainda instigou alguns violentos ventos bafientos vindos de tempos que se querem para trás: a canção foi banida da Rádio Renascença e não ajudou a que uma editora quisesse pegar na banda, pelo que foi necessário recorrer ao eterno espírito punk do faça-você-mesmo. [recordado por Zé Pedro na conversa com o SAPO24, "Um punk é um gajo com uma boa atitude"]. O álbum foi editado por conta própria, com a ajuda do produtor Manuel Cardoso, e foi a primeira pedra numa carreira com quase quarenta anos e 13 LPs.

Estrela rock, mas nunca “estrela”

O sucesso não viria sem as suas quebras; a ressaca de meses de rock surgiu com uma dependência pouco recomendável da heroína, que só parou com a doença prolongada da mãe, que viria a falecer em 1984. Foi a promessa que lhe deixou enquanto ainda era viva: deixar a droga. Entretanto, surgiam rumores atrás de rumores do eminente fim da banda, que se manteve irredutível e que ainda recrutou um outro membro hoje histórico: João Cabeleira. Pouco depois surgiria “Cerco”, o álbum de “Homem do Leme” ou “Conta-me Histórias”. E, dois anos depois, finalmente o êxito, com “Circo de Feras”. É a fase em que muitos jovens passam a decorar os seus casacos com o célebre “X” ou a usar um lenço vermelho em torno do pescoço. E é a fase em que Zé Pedro passa a ser reconhecido por onde quer que passe.

Estrela rock, mas nunca “estrela” no sentido pejorativo da palavra. Zé Pedro nunca se inibiu de conversar com os seus fãs, dar autógrafos, posar para as fotografias da praxe, sorrir, acenar. Era uma estrela rock sem que se possa separar estas duas palavras. Nas redes sociais sucedem-se os elogios: mesmo que não se goste das canções dos Xutos - algo mais fácil do que o que parece - é impossível odiar Zé Pedro. O carisma dele não os deixa. A humanidade que ele sempre demonstrou também não. Nem a sua disponibilidade, como quando a TVI o convida para fazer a apresentação do lançamento da “Popmart”, em Roterdão, digressão que os U2 trouxeram a Portugal em 1997.

Uma humanidade que voltou ao seu ponto mais negro, nessa mesma década, quando não foram só as drogas mas também o alcoolismo a tomar conta da sua vida, num processo autodestrutivo, talvez provocado pelo fecho do Johnny Guitar, o bar-bebé que teve durante anos, em Santos, e que tanto fez também pela música portuguesa. Negro, e negro não é abismo. Esse viria em 2001, quando Zé Pedro dá entrada nas urgências do Hospital São Francisco Xavier. Prognóstico: gravíssimo. A morte ali certíssimo, como nunca antes. Lembremos uma frase de Tim que provavelmente terá a mesma verdade hoje em dia: “Os Xutos sem o Zé Pedro não existem”. Mas Zé Pedro lutou e recuperou, e os Xutos permaneceriam activos. E pouco tempo após sair do hospital, regressou aos palcos. O rock não morre, no fim de contas.

Até hoje. Hoje sentimos que uma parte do rock decidiu morrer, talvez por cansaço, provavelmente por doença, a mesma de que padecia desde esse fatídico 2001: hepatite C. Viu-se forçado a fazer um transplante de fígado, em 2011, a partir daí ostentando, quase que de forma orgulhosa, a cicatriz que lhe marcava o abdómen em palco. Para trás não ficaram apenas os Xutos: ficaram os Palma’s Gang, na qual participou com Kalú, ficou o seu trabalho na Antena 3 e na Radar, ficaram os Ladrões do Tempo e outras colaborações espontâneas, como aquela com os Underground Sound of Lisbon, no Rock In Rio-Lisboa 2014. Só não ficou para trás aquele sorriso, aquele amor pelo rock n’ roll, os “X” e os laços vermelhos e a carga pronta, metida nos contentores, rumo a outras paragens mesmo que sejam apenas as da mente - ou principalmente as da mente. Quem faz história nunca parte com tudo o que tem.

Fotografia de Pedro Correa da Silva / Página de Facebook do Zé Pedro