Nascida em Moçambique, a docente na Universidade Hamad bin Khalifa está há nove anos no Qatar. Inicialmente viajou para este país árabe para liderar um projeto de tradução audiovisual, mas a sua paixão pela inclusão levou-a mais longe, concretamente ao ponto de mudar mentalidades. Dizem, aliás, que está a fazer uma pequena revolução num país onde a deficiência ainda é “escondida”, como a própria contou ao SAPO24.

“Pelas mais diversas razões. E talvez seja necessário colocar o termo entre aspas, pois trata-se de uma questão complexa, marcada por condicionantes históricas, culturais e conjunturais. Enquanto investigadora, tenho tentado compreender as razões que levam à ‘invisibilidade’ deste grupo de pessoas", disse Josélia, dando depois, no seu entender, as razões para este facto.

"A primeira, será o estigma que vem da longa herança de uma organização tribal. Tal tem levado a muitos casamentos dentro do mesmo grupo, o que leva a um maior número de nascimentos de crianças com deficiência. Por outro lado, o sistema social continua a ser muito centrado no núcleo familiar, visto como porto seguro onde se protegem os mais vulneráveis, os idosos, doentes e pessoas com deficiência. Por esta razão, todo o sistema social necessário à verdadeira inclusão destas pessoas em sociedade levou tempo a se organizar. Por fim, há todo um contexto conjuntural de um país jovem em construção que rapidamente se abre à mudança. E as pessoas com deficiência estão, também elas, a ajustar-se à nova ordem social em construção. Toda a mudança social requer tempo, gerações mesmo. Mas é notório que ela está a acontecer”, revelou.

"Vejo o Mundial como um catalisador dos muitos esforços que se vinham a desenvolver um pouco por todo o lado. Creio ter sido o que faltava para alavancar a verdadeira mudança"

Apesar de só recentemente se ter tido conhecimento oficial do trabalho que irá fazer no Campeonato do Mundo, a verdade é que este já vem de há algum tempo. E a ideia, diz, passa mesmo por garantir “serviços diferenciados para pessoas com deficiência” naquele que é considerado o maior evento mundial de futebol.

“Cheguei ao Qatar em 2014 para lançar, na Hamad bin Khalifa Univerisity, em Doha, o primeiro mestrado em tradução audiovisual no mundo árabe. Comigo veio uma experiência de cerca de 20 anos em questões de acessibilidade. Foi natural que, desde logo, integrasse no novo currículo uma disciplina dedicada ao assunto. E nessa altura, tecnicamente, começámos a preparar o que hoje se oferece como soluções de acesso neste mundial, pois ao longo dos anos estivemos a dar formação às pessoas que hoje se encontram no terreno”, referiu a portuguesa.

Al-Janoub Stadium, um dos estádios do Mundial no Qatar | KARIM JAAFAR / AFP

Ser escolhida para liderar uma área específica no Campeonato do Mundo, diz, “foi um trabalho coletivo”. Não é apenas de agora, esse trabalho revolucionário, e serviu para 'convencer' Gianni Infantino, presidente da FIFA, a dar-lhe esta responsabilidade, embora admita que nunca conversou com o dirigente, “talvez ele nem saiba que eu existo”.

“Nenhuma revolução se dá pela mão de uma só pessoa. Durante estes anos apenas tenho dado um contributo, de forma séria e continuada, no meu papel de investigadora e educadora. Para que a mudança se dê existe a necessidade de mudanças sistémicas profundas. E tal exige trabalho concertado e colaborativo. Precisa-se de ação vertical, descendente na forma de leis e ascendente no envolvimento ativo da pessoa com deficiência, mas precisa-se também de ação horizontal em que todas as forças vivas da sociedade se conjugam para fazer acontecer. Vejo o Mundial como um catalisador dos muitos esforços que se vinham a desenvolver um pouco por todo o lado. Creio ter sido o que faltava para alavancar a verdadeira mudança. As múltiplas ações em que me vejo envolvida neste mundial, são apenas mais alguns passos para uma sociedade mais equitativa”, disse Josélia Neves, revelando depois a sua crença que no Qatar as questões das acessibilidades vão superar as edições do Brasil, em 2014, e da Rússia, em 2018.

"Neste momento preparamos a audiodescrição da cerimónia de abertura para que as pessoas cegas possam também elas acompanhar o espetáculo magnífico que marcará o início deste torneio"

“Para Gianni Infantino, a acessibilidade é uma parte integrante e natural do evento que lidera. O país é que precisou de responder às imposições da FIFA, e fê-lo com determinação. Olhou para os serviços oferecidos no Brasil e na Rússia e, tratando-se de um 'país em construção', foi-lhe possível fazer mais e melhor. Por outro lado, as forças vivas da sociedade civil assumiram a liderança para levar mais longe, e de forma mais duradoura, a legacy de que cá tanto se fala, aquilo que tinha sido pedido ao país organizador. E é assim que eu entro nesta mega equipa, coordenando apenas um setor da grande máquina instalada”, afirmou, detalhando um pouco daquele que será o seu trabalho neste Campeonato do Mundo.

“A Qatar Foundation chamou a si a tarefa de mudar ‘este’ mundo no que toca às acessibilidades... agarrou a oportunidade para impulsionar um movimento que há muito começara. Eu passei apenas a responder às necessidades que foram surgindo, passando a dar formação aos milhares de voluntários que irão apoiar o mundial dentro e fora dos estádios, a coordenar uma equipa de audiodescritores e mediadores culturais a oferecer serviços de comunicação acessível durante os jogos e em eventos variados a decorrer um pouco por toda a parte. Neste momento preparamos a audiodescrição da cerimónia de abertura para que as pessoas cegas possam também elas acompanhar o espetáculo magnífico que marcará o início deste torneio. Para além disso, tenho servido como consultora em questões de acessibilidade, apoiando os diferentes organismos envolvidos nas mais variadas ativações culturais, desportivas e lúdicas em curso”, salientou.

Algumas pessoas, como Gianni Infantino, já conotaram este Mundial do Qatar como o “mais acessível”. Josélia Neves assina por baixo, mas diz que ainda há muitos obstáculos a ultrapassar, antes desse grande objetivo ser alcançado neste país árabe.

“A verdade é que nada será perfeito, nem tão pouco tudo vai ser acessível a todos. As barreiras são mais que muitas e não se eliminam de um momento para o outro. O que tenho a certeza é que o esforço para tornar a experiência o mais acessível possível é real. Por exemplo, grandes cuidados têm sido postos na criação de condições de acesso a pessoas com mobilidade reduzida, dentro e fora dos estádios. Por outro lado, haverá relatos descritivos de todos os jogos de futebol [em inglês e em árabe, acessíveis dentro e fora do estádio] para que pessoas cegas possam acompanhar os jogos passo a passo através do sistema de interpretação da FIFA [FIFA interpreting App]. Mas, para que seja efetiva, a acessibilidade tem de ser transversal a toda a experiência e pequenos grandes passos estão a ser dados nas redes de transportes, hotelaria e, por arrastamento, nos serviços conexos”, afirmou.

"[Em Portugal] também se dão pequenos grandes passos. O próximo passo será criar uma estratégia nacional concertada para que se faça uma abordagem holística que integre a saúde, a educação, urbanismo e transportes, cultura e turismo"

Para a grande maioria das pessoas, contudo, estes exemplos que Josélia Neves deu em cima, como os relatos descritivos, ou salas sensoriais, serão uma novidade. A realidade, no entanto, é outra. O que a portuguesa de 60 anos pretende neste Mundial é que as experiências das pessoas com deficiência sejam cada vez melhores:

“De forma objetiva, nada será totalmente novo. Possivelmente, aqui teremos uma maior diversidade de recursos e meios num espaço mais concentrado. O Qatar fez por replicar todas as boas práticas que pudessem apoiar pessoas com deficiência e dar resposta a qualquer necessidade específica que possa surgir. Realço a montagem de salas sensoriais em três estádios e em fan zones no centro da cidade e a disponibilização de salas de apoio e banho para quem delas possa necessitar. Mas acredito que a maior diferença estará no grande trabalho de capacitação humana que tem vindo a acontecer. Serão poucas as pessoas envolvidas na organização e agora ativação deste mundial que ao longo deste percurso não tenham sido chamadas a acolher a diferença no desempenho das suas tarefas. E esse é um fator importantíssimo. Poderão faltar soluções práticas, pois a única certeza que temos é que nada é acessível a todos, mas que não falte a empatia humana”.

Josélia Neves
Josélia Neves durante uma conferência de imprensa sobre as acessibilidades no Campeonato do Mundo EPA

A paixão pela inclusão é demonstrada em quase todas as palavras de Josélia Neves, que está à espera que o mediatismo deste Campeonato do Mundo possa ser assim uma 'arma' que ajude as pessoas com deficiência no futuro.

“A atenção e a visibilidade que as pessoas com deficiência têm ganho com este mundial irão certamente impactar de forma positiva a participação das pessoas com deficiência em todos os setores da vida, o que me leva a crer que também no desporto se darão mudanças positivas. Este evento veio impulsionar grandemente a prática do desporto neste país. Não nos podemos esquecer que foi mesmo instituído um feriado nacional [o único para além do dia nacional] para promover a atividade física entre os nacionais e residentes do Qatar. Tem havido um crescente envolvimento da população em ações desportivas e as pessoas com deficiência não foram excluídas. Um relatório recente sobre a participação de pessoas com deficiência no desporto no Qatar é esclarecedor das várias conquistas que também neste campo se têm dado. Esta é uma área que certamente merecerá maior atenção a partir de agora", admitiu.

"E quem conhece e vive no território lamenta a ignorância e a violência com que se emitem juízos de valor, empolam as questões, tecendo inverdades, sem que se use a mesma paixão para realçar o tanto que de bom se faz"

No Qatar desde 2014, Josélia Neves não esquece também o que por Portugal se tem feito neste setor. Elogia os passos, mas salienta que o mais importante ainda tem de ser dado, concretamente a criação de uma estratégia nacional para a inclusão.

“Também se dão pequenos grandes passos. Tratando-se de um país mais antigo, torna-se mais difícil garantir as infraestruturas necessárias, mas temos maior história e, portanto, maior responsabilidade. Temos muita gente a trabalhar muito bem, mas muito mais há ainda a fazer. O próximo passo será criar uma estratégia nacional concertada para que se faça uma abordagem holística que integre a saúde, a educação, urbanismo e transportes, cultura e turismo. Acredito que ao criar condições de acesso para pessoas com deficiência estaremos a criar um país mais equitativo para todos. Uma sociedade progressiva é inclusiva”, referiu a portuguesa.

Por último, Josélia Neves também não foge ao tema mais polémico deste Campeonato do Mundo, concretamente as críticas ao já chamado 'Mundial da Vergonha', devido à polémica para com os trabalhadores migrantes que ajudaram à 'construção' desta competição, a suspeitas de corrupção, entre outras coisas. A docente, contudo, lamenta que só se realce a parte negativa do que se tem feito.

“Não poderei comentar aquilo que não sei... toda a vida que se perde é valiosa, e por trás de toda a mentira haverá meia verdade. Mas aquilo que se vê nos media e redes sociais nem sempre será de acreditar e muito menos de replicar, pois são muitos os interesses que os movem. Confesso que me preocupa a forma como o jornalismo sensacionalista espalha ‘factos’ que carecem de confirmação. E quem conhece e vive no território lamenta a ignorância e a violência com que se emitem juízos de valor, empolam as questões, tecendo inverdades, sem que se use a mesma paixão para realçar o tanto que de bom se faz”, concluiu.

O SAPO24 é a marca de informação do Portal SAPO, detido pela MEO, que neste Mundial se associou à Amnistia Internacional numa campanha pelos direitos humanos no Qatar. 

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