Quando as câmaras de televisão filmavam os jogadores de FC Porto e Liverpool no túnel de acesso ao relvado vislumbrava-se, ao fundo, uma tarja. Num dos topos do estádio do Dragão os adeptos azuis e brancos pediam que se fizesse história, uma reviravolta histórica.

O pedido era ambicioso tendo em conta que nunca a equipa do norte conseguiu vencer os reds em sete encontros disputados (0-0 e 2-0 em 2001; 1-1 e 4-1 em 2007; 5-0 e 0-0 em 2018 e um 2-0 já este ano), nem nunca foi capaz de virar uma eliminatória em provas europeias quando sofria de uma desvantagem de dois ou mais golos.

À ousadia juntemos o título de melhor equipa do mundo que Sérgio Conceição, com um “talvez” no meio, deu aos pupilos de Jürgen Klopp. Era preciso uma noite perfeita, exímia. Os adeptos faziam a parte deles, o ambiente ensurdecedor no apito inicial passava para o telespetador. Se calhar foi esse entusiasmo das bancadas que empurrou Jesus Corona pela lateral direita em grande velocidade, ajudou o mexicano a tirar Robertson da frente, a fazer o movimento da ala para o meio e a atirar pouco acima da barra da baliza defendida por Alisson Becker. Estávamos no primeiro minuto.

A estratégia que Conceição levou para este jogo permitia ver que o remate de Corona era apenas um prefácio para o que se podia vir a passar no jogo. Em vez de um 4-4-2, como se apresentou na terra dos Beatles, o FC Porto alinhou-se no 4-3-3, a formação em que joga com maior autenticidade, dado o estilo de futebol do seu treinador. Óliver Torres deu lugar a um Brahimi criativo, capaz de ocupar a ala e o meio-campo, Soares não foi opção de início e Pepe entrou para o quarteto defensivo. Era um Porto igual a si próprio, a jogar em casa.

Sem opção, o Liverpool fez o que pôde: defendeu e tentou sair a jogar, ambas estratégias sem sucesso. Pode-se dizer que os dragões só não se adiantaram cedo no marcador por culpa própria. Em dois minutos, Marega falhou dois golos, primeiro de cabeça, após um cruzamento de Corona (13’) e depois de primeira em resposta a um cruzamento de Alex Telles (15’).

Os reds falhavam posicionamentos e deixavam que o Porto criasse situações escusadas, falhavam os passes longos enquanto que os dragões continuavam a tentar, num futebol agressivo de vontade e inteligente, capaz contornar os espaços fechados do Liverpool apoiados pela técnica e qualidade dos homens nas laterais. Tentou Pepe fora de área (18’). Tentou Otávio (22’). Tentou Brahimi (25’). Preparava-se Herrera para tentar (26’), isolado frente ao guarda-redes brasileiro, antes do árbitro assinalar o fora-de-jogo.

Em última análise, a melhor equipa do mundo define-se pelo que faz nos momentos mais difíceis. Pela maneira como supera os momentos de crise, como os gere emocionalmente e contorna os erros. As goleadas, esse sistema de avaliação talvez mais consensual, vêm pintados na restante época e sustentam a capacidade de alavancar um jogo. Conceição disse que o Liverpool era, talvez, a melhor. E os ingleses mostraram-no.

Chegava a ser desconcertante ver como uma equipa tão longe do seu potencial estava serena. Antes do minuto 26, o FC Porto somava 13 remates contra zero do Liverpool, mas os pupilos de Jürgen Klopp pareciam confiar que o jogo ia mudar, eram uma equipa que se sentia confortável em não ter bola. Nunca deixaram de pressionar à procura de provocar o erro dos dragões, mas sempre com grande paciência. E a gíria futebolística do “não marca, sofre” aconteceu, inevitavelmente.

Minuto 26. Salah, entre dois defesas portistas, descobre Sadio Mané do lado direito que, isolado diante de Casillas, fez o golo. O árbitro esfriou de imediato os festejos ingleses, assinalando o fora de jogo - e de certa forma devolvendo o sentimento de justiça que se evaporou dos adeptos azuis e brancos nos segundos em que as redes abanaram -, mas o VAR devolveu a alegria a Mané e a injustiça das redes aos fãs.

Antes do intervalo, no tempo de compensação em cima dos 45 minutos, ainda houve tempo para uma grande mancha de Casillas aos pés de Origi, evitando um lance de muito perigo para a baliza dos dragões, e para um desvio de James Milner, após cruzamento de Alexander-Arnold, que passou a razar o poste da baliza do guarda-redes espanhol.

Estávamos à beira de ver outro jogo, agora contra a tal melhor equipa do mundo de que Conceição falava. O Liverpool preparava-se para fazer jus ao elogio e os números de golos da eliminatória, muito difíceis para os dragões de virar, davam-lhes essa possibilidade. As estatísticas da primeira parte (mais posse de bola e mais do triplo dos remates), essas, davam vida ao FC Porto para fazer uma segunda parte que dignificasse a moldura nas bancadas.

Mas o segundo tempo trouxe a melhor equipa do mundo e não o melhor FC Porto. O Liverpool continuou a ser paciente e a apostar num futebol vertical de contra ataque, capaz de invadir os espaços entrelinhas dos dragões e os azuis e brancos a transformar o adjetivo da primeira parte de “grande” para “grande desperdício”. Mudava a perspetiva.

Com Soares em campo, e de volta ao 4-4-2 que em Liverpool terminou em 2-0 a favor dos reds, os avançados azuis e brancos continuaram com pouca sorte. Tiquinho, de cabeça, atirou ao lado da baliza de Alisson (54’). Os ingleses, com Firmino no lugar de Origi, continuavam eficazes: aos 65 minutos, Alexander-Arnold isolou Salah e o egípcio não falhou.

O golo de Éder Militão, quatro minutos depois, de canto, nada mais fez do que dar alguma justiça ao "placard" do resultado. Aos 73, Sadio Mané também repôs justiça na distribuição do desespero depois de, na área, ter escapado de Casillas e, de baliza aberta, ter falhado o golo fácil.

Mas era uma questão de tempo até que se confirmasse a superioridade inglesa com um golo de Firmino (78’), após um belo cruzamento de Henderson, e depois com outro golo de cabeça, na sequência de canto, de Virgil van Dijk (84’).

A história que se escreveu esta noite no Dragão não era para ser esta. O FC Porto, com uma entrada digna de uma equipa que se prepara para fazer 90 minutos épicos, daqueles que mais tarde se contam aos netos, colapsou na paciência de quem não se importou de esperar pela sua vez; e que não falhou.

Liverpool FC Porto
Liverpool FC Porto créditos: EPA/JOSE COELHO

Bitaites e postas de pescada

O que é que é isso, ó meu?

Se Moussa Marega não tivesse desperdiçado tantos golos nestes jogos com o Liverpool, em vez de estar a caminho 20 golos esta temporada podia estar rumo aos 30. Sabe mais, pode mais, não pode falhar mais.

Henderson, a vantagem de ter duas pernas

Num jogo sem exibições individuais de grande brilhantismo, os 21 minutos de Henderson foram deliciosos. O médio inglês entrou a tempo de assistir Roberto Firmino para o golo, criou duas oportunidades, completou quatro passes chave e acertou 89% dos passes. Agora imaginem se este menino tem começado de início.

Fica na retina o cheiro de bom futebol

O segundo golo do Liverpool é construído em dois passes. É simples, bonito e eficaz como se quer.

Nem com dois pulmões chegava à bola

Sadio Mané conseguiu chegar com a bola ao coração da área, conseguiu passar por Casillas, ficar de frente para a baliza aberta e o mais difícil: falhar.