A história tem caprichos: o oficial alemão, um coronel, Harald Jager, que às 11 e meia da noite de 9 de novembro de 1989, no meio da enorme confusão daquela longa jornada, se precipitou e mandou abrir a estreita cancela no posto de vigia junto à ponte de Bornholmer, dando assim início a uma eufórica travessia que de imediato alastrou e não mais parou, tinha participado, com convicção, em 13 de agosto de 1961, na grande operação de levantamento do muro de Berlim. Harald Jager esteve assim nos dois momentos limite do “Muro”, a construção e a queda.
No verão de 1961, Harald Jager tinha 18 anos e estava entusiasmado com o modelo de gestão política no setor de Berlim que a partilha da cidade, em 1945, após a guerra, entregara aos soviéticos. Ao longo dos anos 50, ao mesmo tempo que mudaram os nomes das ruas herdadas do tempo nazi, foram sendo instalados pelos pró-soviéticos postos fronteiriços. Chegou a haver 80 controlos ao longo dos 43 quilómetros da linha de separação dentro da cidade Berlim. Puseram cancelas em todas as avenidas, ruas e estradas por onde passava a nova fronteira. À entrada nos anos 60, tornou-se evidente a debandada de gente do setor soviético para o lado ocidental. O êxodo disparou com os rumores de que a fronteira poderia vir a ser fechada. Estão contabilizados 18.000 jovens que se escaparam em junho para o lado ocidental. Foram 20.000 em julho, e quase todos encontravam trabalho através da solidariedade dos aliados ocidentais. A mão de obra começava a faltar no lado soviético de Berlim. Foi então que os dirigentes soviéticos, encabeçados em Berlim por Walter Ulbricht, tomaram a decisão de construção de uma vedação que fosse ao mesmo tempo barreira e intimidatória.
Na manhã de 13 de agosto de 1961, um domingo, milhares de militares, polícias e civis ligados ao partido comunista, foram mobilizados para colocar barreiras de arame farpado ao longo dos 43 quilómetros que separavam o setor soviético de Berlim da parte gerida pelos aliados ocidentais. Nesse domingo, ao perceberem que a fronteira estava a ser fechada, muitos berlinenses que sempre viveram no lado que foi atribuído aos soviéticos, tentaram em desespero mudar-se para o lado ocidental, com tudo o que podiam. Mas já não conseguiram. Os dias seguintes foram de intensas operações. Paralela à linha de arame farpado, a cerca de 100 metros que passaram a ser terra de ninguém, foi desenhada uma outra linha em cima da qual foi rapidamente levantado o alto e longo muro. Multiplicaram-se postos de vigia, servidos por potentes holofotes, em toda a zona da fronteira. Ao mesmo tempo, foram deslocados e realojados todos os moradores nos prédios junto ao muro. Esses prédios, esvaziados, ficaram com as portas e janelas tapadas por tijolos e cimento. Só numa avenida, a Bernauerstrasse, paralela a uma parte do muro, foram deslocadas cerca de duas mil pessoas, numa intervenção dramática em que alguns tentaram dar o salto e acabaram abatidos a tiro. A construção do muro, com 156 quilómetros de extensão, foi acompanhada pela instalação de mecanismos de disparo automático e minas. O controlo tornou-se exaustivo. Permaneceram oito zonas de circulação só acessíveis a ocidentais que iam visitar familiares no leste. Sete dessas travessias eram apenas para peões e uma para comboios, que raramente circulavam e aos quais só podiam aceder, mediante passe especial, residentes no lado ocidental. O então jovem Harald Jager foi um dos civis envolvidos na operação militar que envolveu o levantamento do muro, que foi sempre crescendo em altura e espessura.
Harald Jager foi admitido na Stasi, a sinistra polícia política da RDA, criada em 1950. Subiu na hierarquia. Não chegou a ver, em 26 de junho de 1963, o presidente John F. Kennedy, dos EUA, subir a uma plataforma voltada para o muro e fazer a célebre proclamação “Ich bin ein Berliner” (Eu sou um berlinense). Mas ouviu, em junho de 1987, outro presidente dos EUA, Ronald Reagan, diante da Porta de Brandeburgo, símbolo maior da separação entre os dois mundos da Guerra Fria, desafiar o reformista que tinha tomado o poder em Moscovo: “Senhor Gorbachov, se você realmente deseja a paz e a prosperidade, venha a esta porta e faça abater este Muro.”
Com Gorbachov no Kremlin, todo o antes hermeticamente fechado mundo soviético começou a abrir-se. Na Polónia, o Solidanosc (Solidariedade) do corajoso Lech Walesa ganhava cada vez mais força na exigência de reformas e pluralismo democrático. Na Hungria e na Checoslováquia também crescia a luta pela liberdade. Tal como na RDA.
No sábado, 4 de novembro de 1989, faz agora 30 anos, uma manifestação na Alexanderplatz de Berlim juntou mais de 500 mil pessoas que reclamavam reformas democráticas. Também milhares de pessoas em Leipzig, em Dresden e em outras cidades, sempre com a mesma palavra de ordem: “Wir sind das Volk” (Nós somos o Povo). A maioria desses manifestantes nem chegava a ousar exigir imediatamente o fim do “Muro”. Mas, naqueles dias, o calendário político avançava a velocidade supersónica. Em quase todo o Leste da Europa estava imparável o ímpeto pela libertação democrática. A Berlim, Praga, Budapeste e Varsóvia chegavam cada vez mais jornalistas ocidentais. O governo da RDA introduziu a prática de conferências de imprensa regulares, pelo porta-voz Gunter Schabowski. A pressão popular já tinha levado o governo da RDA a anunciar que estava em estudo facilitar algumas passagens através do Muro.
Ao começo da noite de quinta-feira, 9 de junho de 1989, Schabowski entra numa sala do governo de Berlim que está cheia de jornalistas estrangeiros, para a conferência de imprensa convocada. Um jornalista da agência italiana ANSA é dos primeiros a disparar perguntas. Quer saber quando será tomada a decisão sobre aberturas à circulação através do Muro. Schabowski surpreende ao responder de rompante com duas palavras “Ab sofort” (de imediato). Ninguém imaginou que um funcionário oficial pudesse pronunciar uma declaração tão determinante sem ter autorização do topo. Continua a parecer que não tinha. Mas aquela declaração do atrapalhado Schabowski precipitou milhares de berlinenses residentes no lado RDA em direção ao Muro. Aquela declaração acelerou a viragem de uma página da história, que de facto já estava a mudar.
O nosso já conhecido Harald Jager tinha entretanto sido promovido a coronel e comandava o posto de controlo do Muro na estratégica zona da Bornholmstrasse, onde uma ponte metálica ligava a RDA ao setor francês de Berlim. Naquela noite de 9 de novembro ele estava no posto. Eram cerca de 10 da noite quando milhares de berlinenses se juntaram ali e exigiam passar. Muitos tinham transístores e a rádio repetia a declaração de abertura “de imediato”, que Schabowski tinha acabado de fazer. O som daquele anúncio ecoava por todo o lado, com o auxílio de gravadores de cassetes e misturava-se com o ruído das buzinas persistentes dos Trabant, os automóveis dos pobres, que também se acumulavam nos acessos à ponte. Toda a gente acreditava que tinha chegado o dia da abertura da fronteira.
Harald Jager começou por resistir. Reforçou as patrulhas na proteção daquela zona do Muro e fechou-se na torre de vigia a conferenciar. Apareceu um outro oficial que morava perto. Não conseguiam telefonar para os oficiais mais de topo. Ouviam tão repetida a declaração “de imediato” e era tão gigante a pressão sobre a fronteira que tomaram a decisão: levantamos a cancela.
Seguiu-se o efeito dominó, com as cancelas a serem levantadas. Naquela madrugada de já sexta-feira, 10 de novembro, dezenas de milhares de pessoas que tinham vivido os últimos anos sem poderem sair do mundo comunista aventuravam-se na exploração de Berlim Ocidental. Em muitos lugares a cerveja e as salsichas eram oferecidas. No sábado, 11, já se contavam dois milhões de visitantes da RDA em Berlim Ocidental onde alguns residentes, passada a euforia, davam mostra de exaustão com o caos instalado.
Numa só noite, com acontecimentos a precipitarem-se fora de controlo, tinha caído um muro levantado também durante uma noite, 28 anos antes.
Tombada a pedra de Berlim no dominó da Cortina de Fero, com outras peças já também a cair na Hungria e na Checoslováquia, logo a seguir na Polónia, todas as outras peças caíram nas semanas seguintes.
Berlim, que tinha sido capital do Reich de Hitler, dividida em 1945 pelos quatro vencedores da segunda Grande Guerra Mundial (Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética), tinha sido, nos 44 anos de divisão, o lugar de maior tensão no confronto entre os dois grandes blocos geopolíticos que naquele tempo dominaram o mundo metido numa Guerra Fria.
Esse mundo bipolar e congelado chegou ao fim naquele admirável 1989. Avançou a mundialização e é um facto que a Europa, com uma União com muitos adversários externos e internos, tem perdido relevância política, embora continue estandarte da liberdade e de ambição de fraternidade. Será que ainda é possível recuperar a esperança aberta com os extraordinários acontecimentos de há 30 anos?
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