A nuance está fora de moda. Hoje, o valor de uma opinião está na força e convicção com que esta se grita aos do outro lado. Ver o mundo a branco e preto e comprometer-se fervorosamente com um dos lados deixou de ser sinal de imaturidade e passou a ser indício de honestidade intelectual: aí está o que se assume, o que não é morno, o que não fica em cima do muro.
Confunde-se, claro está, o ter dúvidas (tema que abordei nestas páginas há umas semanas) com o ser-se de fraco espírito; o reconhecer mérito a argumentos contrários com estar a ver para onde o vento sopra.
Eu já me confessei: tenho mais dúvidas do que certezas. Até por defeito de profissão, habituei-me a procurar para cada opinião o argumento que a desconstrói, e fui descobrindo que são poucas as que ultrapassam incólumes esse exercício crítico. Não surpreende. Afinal, há uma razão para as pessoas discordarem em relação a quase tudo: é que quase tudo tem espaço para um desacordo sério.
Serviria este introito para falar de muitas coisas sobre as quais as pessoas têm certezas absolutas de sentidos opostos. Hoje, serve-me para falar do paradoxo da eleição democrática de políticos que colocam em causa os fundamentos da democracia.
As opiniões são normalmente simples de formular: há os que acreditam que não deve ser dado qualquer espaço, em democracia, ao crescimento de forças potencialmente antidemocráticas. Isto traduz-se, por exemplo, no apelo à ilegalização de certas forças políticas, ou no compromisso de não dar posse a soluções de governo que incluam essas forças.
Outros afirmam o contrário: qualquer força política deve poder recolher os frutos das suas vitórias eleitorais, que são no fundo expressão da vontade popular, desde que cumpram os mínimos constitucionais – que são efetivamente mínimos, e cuja fasquia é particularmente fácil de superar, com uns estatutos bem escritos e um cuidado em não transpor certas linhas vermelhas.
Este tema, que tem sido abordado com frequência nestas presidenciais, a propósito do Chega, não é novo em Portugal. Em 1986, Miguel Sousa Tavares perguntava a Freitas do Amaral e a Mário Soares, então candidatos a Presidente da República, se dariam posse a um governo que tivesse membros do Partido Comunista. As respostas, que podem ver aqui, não diferem muito das que ouvimos hoje: um dizia que não, para defesa da democracia, outro dizia que sim, para … defesa da democracia. Isto é: um defendia a democracia pugnando pelo afastamento da força antidemocrática, outro defendia-a honrando os resultados eleitorais, que deram àquela força política peso suficiente para fazer parte de uma solução governativa.
Desengane-se quem pensa que por detrás desta discordância estão profundas diferenças entre esquerda e direita: assim como, hoje, grande parte da esquerda está unida no entendimento de que o Chega e a extrema-direita representam um grande risco para a democracia, também em 1986 Freitas do Amaral, e a direita democrática, se recusavam a conceber uma solução governativa que incluísse ministros do Partido Comunista.
Da mesma forma, a atual direita parece defender a posição que então defendia Mário Soares: há que honrar os votos do povo que dão à força temida – seja o Chega de hoje ou o PCP de 1986 – o peso para determinar as condições do seu apoio à governabilidade.
Ambos os lados têm excelentes argumentos.
O sistema prevê a ilegalização de forças políticas com determinadas características – uma regra que herdámos por ensinamento histórico e que tem por isso o valor de um aviso a letras vermelhas. A democracia tem, pela sua abertura, pelos direitos que garante, fragilidades evidentes, na medida em que permite à maioria dos eleitores votar em forças antidemocráticas. Foi através de eleições livres que Hitler, Fujimori, Lukashenko, Órban e tantos outros, subiram ao poder, antes de mudarem as regras, consumirem o sistema, e destruírem a democracia que os elegeu. A democracia funciona no pressuposto de que toda a gente quer viver nela; quando assim não é, autodestrói-se.
Assim, torna-se legítimo limitar certos direitos democráticos na estrita medida necessária para assegurar a sobrevivência da democracia, na convicção de que as alternativas são piores e necessariamente menos livres.
Por outro lado, a quem cabe decidir que forças são antidemocráticas, se não aos tribunais? Quem traça, se não o eleitor, a linha do que é aceitável e desejável politicamente? Se os tribunais competentes legalizam e permitem a existência de um partido, e se os eleitores em urnas votam em peso nesse partido, a que outra entidade foi atribuída autoridade para dizer “alto lá, que isto até pode ser legal, e o povo até pode querer, mas nós suspeitamos que isto vai acabar mal, pelo que temos de pôr um travão a isto”? Este papel não pode, nunca, caber às forças políticas do outro lado: as de esquerda que vetariam o Chega em 2021, as de direita que, em 1986, vetariam o PCP. Se é na Constituição que queremos encontrar respaldo para ilegalizar uma força política, não teremos de também de nos sujeitar às decisões de quem, constitucionalmente, tem o poder para decidir esse assunto?
É provável que o meu leitor tenha a sua certeza e os seus argumentos. O meu objetivo aqui não é tirar-lha, é demonstrar que este é um tema muito complexo, tão complexo que, no espaço de 35 anos, e invertidos os polos ideológicos da questão, as posições generalizadas de esquerda e direita mudaram completamente: sinal claro de que há uma dimensão de conveniência e proximidade política a determinar uma posição que é frequentemente rotulada como “de princípio”.
Como dizia no início, hoje quem não escolhe um dos lados da contenda é porque quer ficar “em cima do muro”, isto é, à espera de perceber para onde vale a pena saltar. Concordo que essa posição pode ter muito de cínico e calculista, mas já me agasta que se diga que reconhecer o cinzento de uma questão, e ter dúvidas suficientes para não fechar uma posição, é algo de negativo. Num mundo de Prós e Contras, de É ou Não É, quem pensa a sério nos temas raramente consegue chegar a mais do que um Nim.
De uma forma ou de outra, cada vez que escrevo, que denuncio um truque, que dou uma opinião, que apoio uma candidatura, vou-me comprometendo, com clareza, publicamente. Eu gosto de me comprometer: significa normalmente que pensei o suficiente numa questão para estar confortável com essa tomada de posição.
Neste tema, contudo, tenho algumas dificuldades em ser um grande entusiasta de qualquer um dos lados.
Abomino o programa político e a linha de comunicação do Chega. Tenho poucas dúvidas sobre a linha em que se inserem – em sua honra, não escondem ao que vêm – e acho que essa linha constitui um perigo para a democracia.
Preferia que não existissem, nem aqui, nem noutros lados onde outros Chegas têm feito tanto mal. “Gostaria”, com um fervor que quase se torna num “amava”, que o Chega não tivesse nunca peso eleitoral para que a questão sequer se colocasse. Que essa fosse uma possibilidade “meramente académica”, como concordaram, em 1986, Freitas do Amaral e Mário Soares, sobre a presença do PCP num Governo democrático. Soltaria um esgar de alívio se o Tribunal Constitucional revisse a sua posição e entendesse que o Chega representa em Portugal uma força autoritária, racista, fascista, que defende ditaduras de pessoas de bem (todas as ditaduras, nas bocas dos seus ditadores, são ditadores de pessoas de bem), e que como tal não tem espaço na democracia portuguesa.
Contudo, o que faz do Chega um perigo – e do PNR, por exemplo, uma nota de rodapé – é o facto de as pessoas votarem no partido. Este não é um facto qualquer: é o facto da democracia, da autodeterminação, da vontade individual, da identificação política do cidadão com uma mensagem, por mais escabrosa que seja.
Removê-los por decreto deixar-me-ia descansado a mim e à minha visão do mundo; mas deixaria órfãos milhares de concidadãos, que têm o mesmo direito que eu de construir a sua visão política e de apoiar a plataforma que melhor a representa.
É por isso que, antes de defender ilegalizações de partidos, ou de rejeitar dar posse a alguém com votos para isso, prefiro apelar às forças democráticas que tentem extinguir o Chega nas urnas, desenhando e propondo uma proposta política democrática que dê resposta aos problemas reais de quem se sente representado por eles, ao mesmo tempo que promove de forma pedagógica, e não moralista, uma visão progressista, humanista e solidária de sociedade.
O perigo do Chega é tão grande quanto a sua expressão eleitoral. Ilegalizá-lo não resolveria o problema: dar-lhe-ia gás, energia, e o amanhã reservaria um outro Chega, para apanhar as mesmas pessoas descontentes.
O Professor Sampaio da Nóvoa, no período pré-fusão das Universidades Técnica e de Lisboa, era criticado frequentemente por debater demais, com toda a gente, em todas as faculdades, várias vezes. “Para quê, só vão levantar mais problemas, mais obstáculos”. Lembro-me de o ouvir responder, várias vezes: “A democracia dá trabalho, mas vale a pena”. A mim ficou-me: a democracia dá trabalho, mas vale a pena. Nem sempre podemos justificar os atalhos que tomamos com o bem maior que defendemos, porque a democracia não é um fim, é um processo.
É por isso, com as minhas dúvidas, porque nada disto é simples, que me alinho pelo diapasão seguinte: até que as instituições constitucionalmente competentes alterem o seu entendimento, para mim o Chega tem o direito de jogar o jogo democrático com os outros, e pode assumir os cargos que a sua expressão eleitoral determinar.
Esta não é para mim uma conclusão fácil, mas deixa-me pelo menos a certeza de que tenho um papel a cumprir, que não é o de ficar na bancada a pedir ao árbitro que mande a equipa adversária sair do campo. Estou em campo, com a camisola da democracia vestida, e o meu objetivo é, apenas e só, continuar a ganhar.
Comentários