Antes de descrever o que se está a passar, talvez seja esclarecedor definir o significado das etiquetas. 

A “superioridade moral” da democracia é permitir no seu seio movimentos anti-democratas, pois considera que o bom senso do eleitorado se encarregará de defender as liberdades.

“Direita” é um conceito lato, que não implica uma alteração da ordem democrática instituída, a chamada democracia parlamentar. As pessoas e organizações de direita preferem o rótulo de “conservador”, que não implica antítese com a “esquerda”, mas sobretudo a defesa de valores tradicionais da estrutura familiar e hierárquica e do sistema capitalista. Na prática, e abreviando o que levaria muito texto a explicar, a direita é contra o equalitarismo, as variedades sexuais e a liberalização de certos comportamentos. Socialmente, favorece a meritocracia em vez da solidariedade social - os mais eficientes merecem ganhar mais, quem não progride é porque não se esforça e não deve ser ajudado pelos impostos dos que trabalham. Defende que a iniciativa privada é mais eficiente do que os serviços públicos e acha que quanto menos Estado melhor. 

Também acredita - e este ponto é essencial para a distinguir do que hoje chamamos de “direita radical” - que estes interesses podem ser defendidos dentro do quadro constitucional democrático, confiando que o tal bom senso do eleitorado reconhecerá o mérito das suas propostas.

Olhando para as últimas décadas, usando como marco a derrota dos fascismos de direita na II Guerra Mundial, ouve um período de quase fascínio pelos fascismos de esquerda, enquanto os movimentos conservadores como que “se encolhiam”, temendo ser associados às “injustiças” sociais e ao radicalismo da ordem social mais tradicional. Mas, à medida que as soluções propostas pelas esquerdas ficavam aquém das suas promessas, as direitas voltaram com as suas propostas e conheceram um sucesso considerável. Enquanto no pós-guerra o socialismo (um termo também lato, mas não vamos elaborar) dominava as democracias parlamentares, nas décadas seguintes os partidos conservadores conseguiram vitórias consideráveis.

É nesta alternância de propostas de esquerda e de direita, neste equilíbrio sempre em desequilíbrio, que se formou a Europa próspera e abundante que conhecemos hoje, onde as desigualdades estão longe de acabar mas há muito mais igualdade do que nunca. Um trabalho em andamento.

O aparecimento das direitas radicais - aquelas que usam a disputa democrática para chegar ao poder, mas cujo objectivo declarado, uma vez lá chegadas, consiste na redução da democracia representativa a um simulacro - é difícil de localizar no tempo. Foi acontecendo, animadas pelas promessas não cumpridas de representatividade equalitária, particularmente no que toca à inclusão e igualdade social.

Tem havido acontecimentos marcantes, como as eleições de Viktor Orbán na Hungria, em 2010, ou de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2017 - o que acontece nos E.U.A. tem sempre efeitos na Europa. Orbán criou até um conceito contraditório que hoje é aceite como um facto: a “democracia iliberal”. Erdogan foi eleito presidente da Turquia em 2014 e, tal como Orbán, perverteu lentamente as instituições democráticas até transformar o estado laico e liberal numa autocracia semi-teocrática. Trump fez tudo o que pôde e não pôde para eliminar o sistema de  “checks and balances” da constituição. Na Polónia, o Partido Lei e Justiça (PIS), do poder desde 2015, tem limitado sistematicamente a independência do judiciário e a independência da comunicação social.

Estes são os casos mais conhecidos da tomada do poder de uma direita radical. Não são autocracias declaradas (como na Federação Russa ou no Irão, por exemplo), uma vez que mantêm um simulacro de eleições e as instituições democráticas, mas estão cada vez mais longe do sistema liberal representativo que as colocou no poder. 

O mais chocante é o modo como esta nova forma de governar - “democracia iliberal” é um bom rótulo, obrigado Viktor! - passou a ser aceite como um facto corriqueiro da vida política.

Veja-se o caso da Áustria: em 2000, quando o Partido da Liberdade (FPO) liderado por Jörg Haider, que se tinha mostrado simpatizante com o nazismo, fez uma coligação com os ultraconservadores do Partido do Povo, houve protestos em Viena e noutras capitais europeias. A UE até impôs sanções à Austria. Mas em 2017, quando os dois se voltaram a coligar, ninguém veio para a rua. Agora, o FPO é o maior partido do país e a as sondagens mostram um apoio maioritário pelas suas políticas anti-imigração.

Em Espanha, o Vox, anti-imigrantes e anti-autonomias regionais, em 2019 ficou em terceiro nas eleições e calcula-se que venha a fazer parte do Governo que será eleito agora em Julho. Será a primeira vez que um partido pós-franquista chega ao poder desde o fim do regime do Generalíssimo.

Na Alemanha, o AfD, considerado neo-nazi, e que esteve quase a ser proibido, segundo as sondagens será o segundo mais votado nas próximas eleições do Bundestag, acima dos sociais-democratas. Ao nível local, tem ganho um número crescente de circunscrições municipais.

Na Suécia, o Partido Democrata Sueco, considerado racista e neo-nazi em 2016, ficou em terceiro lugar nas eleições de 2022 e o governo social-democrata de Magdalena Andersson conta com ele para a maioria parlamentar.

E temos o caso da França, onde o Partido Socialista, que foi governo duas vezes na V República, desapareceu completamente. Hoje, o partido com mais hipóteses de suceder a Emmanuel Macron é o Rassemblement National de Marine le Pen. Nas últimas eleições parlamentares ficou em segundo lugar e nas próximas presidenciais ainda não apareceu ninguém com carisma e estatuto para vencer Marine. 

Mesmo a Holanda, um país famoso pela sua liberalidade, é governada actualmente por Mark Rutte, do Partido do Povo para a Liberdade e Democracia. Não se trata de direita radical, mas é, no mínimo, centro-direita e bastante conservador.

Em Itália, ganharam os famigerados Irmãos da Itália; embora Giorgia Melloni até agora não se tenha mostrado muito radical, não se pode esperar nada de suave de um governo que é considerado o mais à direita - ainda mais do que o falecido Berlusconi - desde a II Guerra Mundial.

Quanto a Portugal, o Chega, terá na sua V Convenção Nacional a presença de Tino Chrupalla, do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), Geert Wilders, do Partido da Liberdade (PVV), dos Países Baixos, Tom Van Grieken, do Vlaams Belang (VB), da região belga da Flandres, Boris Kollar, do movimento eslovaco Sme Rodina (Somos Família), Rocio Monasterio, líder do Vox em Madrid, Kinga Gál, vice-presidente do Fidesz, e Cláudiu Tarziu, da Aliança para a União dos Romenos (AUR). O Chega já é a terceira força política na Assembleia da República e muitos dizem (aqui estamos a especular) que o PSD não poderá ser governo sem apoio de Ventura.

Finalmente, para encerrar esta saga com chave de ouro, convém lembrar, como fizemos na última coluna, Donald Trump poderá ser o próximo presidente dos Estados Unidos.

Noutros tempos, a maior ameaça para a liberdade da democracia liberal - imperfeita mas insuperável -  vinha da esquerda radical. Em certos tempos e países, e não precisamos de dizer quando foi aqui, esteve quase iminente. Agora, vem da direita radical - e nem estamos a contar com os inúmeros países que já são ditaduras. A história está sempre a mudar - basta ver como o país mais comunista, a URSS, se transformou em vinte anos no país mais fascista, a Federação Russa. 

Mas, se a História muda constantemente, a Esperança é a última a morrer...