Foi aprovada a lei da eutanásia. Falta saber se será promulgada pelo Presidente da República, mas, seja qual for a sua decisão, a verdade é que foi dado um passo gigante em direcção a uma sociedade mais progressista e humana.

A discussão sobre o tema não se deve dar por encerrada. Embora considere a lei robusta o suficiente para evitar uma prática abusiva e leviana, sinto que essa mesma lei deverá ser revista periodicamente, acompanhando e adaptando-se à realidade que surgirá com a prática da eutanásia. Dado por encerrado o debate político, não me importa, nem considero producente, focar-me nos argumentos contra e a favor; prefiro antes focar-me nas portas que esta nova lei abre para mim e para aqueles que, como eu, gostariam de evitar uma morte sofrida e dolorosa.

Já disse, num outro artigo, que compreendo que as noções e definição de dignidade são tão múltiplas e variadas; tão múltiplas e variadas quanto o número de pessoas a quem se pedir para reflectir sobre essas mesmas noções e definição. Nesse sentido, e uma vez que não sou especialista em nenhuma das áreas da esfera da eutanásia (ou especialista em qualquer assunto, na verdade), só tenho para oferecer uma perspectiva muito subjectiva e informada pela minha actual condição e experiências.

É importante fazer esta ressalva: sempre que falo da minha condição e experiência não estou a, disfarçadamente, tentar fazer um apelo à misericórdia (até porque tenho grandes problemas com a conotação da palavra), mas sim a estabelecer uma realidade factual. Tão factual como a experiência na primeira pessoa o permite, claro.

Tenho 31 anos, sou doente oncológico em fase terminal e, nos últimos 6 meses, tenho começado a sentir na pele (nos ossos, para ser mais correcto) os limites da medicação que visa acalmar dores. Nunca pensei que aos 31 anos fosse ter mais dificuldade que o meu avô de 84 tem em levantar-se da cama e vestir um par de meias. Tarefas que para o leitor saudável e no apogeu da sua jovial juventude física serão inócuas, e até feitas de forma inconsciente e automática, para mim têm vindo a ganhar uma dimensão suficiente para fazer inveja a qualquer um dos doze trabalhos de Hércules. No que diz respeito ao trabalho, também tenho algo em comum com o meu avô: estou neste momento incapaz de o fazer com o gosto, energia e dedicação que lhe punha antes. Aliás, estou mesmo incapaz de o fazer. E é apenas o começo. A dor e as limitações que daí advêm só terão tendência a piorar.

Embora a medicação e alguns cuidados tenham um impacto positivo no controlo da minha dor, a verdade é que, em determinadas alturas, e pelas mais variadas razões, eles não são suficientes. É normal: por melhor que seja a medicina e os cuidados de saúdes ao meu dispor, há limitações muito concretas que se prendem com os limites da própria medicina e biologia. Torna-se relativamente fácil projectar isto para o futuro (passo a redundância) e perceber que a dor só terá tendência em aumentar, aumentando o meu sofrimento e limitando-me cada vez mais. Assim, torna-se relativamente fácil imaginar um dos possíveis cenários de final de vida: fisicamente limitado, com analgésicos no meu organismo a tentar colmatar a dor que transforma qualquer movimento em sofrimento. É aqui que dou a maior das importâncias à minha noção de dignidade.

A minha noção de dignidade na morte anda de mãos dadas com o conforto e rapidez, longe da dor e de um cenário que me impeça de ser eu, em toda a plenitude. Tenho para mim que a dignidade na morte é inversamente proporcional à quantidade de cuidados necessários para me apaziguar o sofrimento. É também inversamente proporcional ao nível de misericórdia e piedade necessárias para cuidar de mim.

Não sei se a etimologia me dá razão, mas sinto que a palavra misericórdia tem uma conotação sacra, quase religiosa, onde a dor e o sofrimento são vistos como pretextos para a exaltação das qualidades benévolas de quem os combate, numa onda de comiseração e pena pelo afligido. Não gosto disso. Não gosto que me proporcionem o bem-estar por pena. Gosto do bem-estar e do conforto e morrer com bem-estar e conforto não me parece mau, de todo.

Não digo que esta seja uma noção transversal a todos os doentes terminais. Estou, aliás, bem ciente que esta noção é partilhada apenas por alguns, e não é uma noção generalizada.

A verdade é que esta lei traz-me uma hipótese de escolha e, por consequência, uma solução para um dos meus problemas mais íntimos e profundos. Não quer dizer que opte por ela, mas gosto da ideia de ter ao meu dispor uma escolha que me permite ter controlo sobre a minha própria morte, numa altura em que tenho cada vez menos controlo sobre a minha vida. Por mais que tente, sou incapaz de elevar a dor e o sofrimento à qualidade de virtudes. Esta lei faz com que aquilo que poderia vir a ser visto como um acto de misericórdia seja agora, nada mais nada menos, que um direito. Tudo nisso é bom.

Diz-nos a etimologia que eutanásia deriva das palavras gregas EU, que significa “boa”, e THANATOS, que significa “morte”. Levando o significado e a aglutinação dessas palavras à letra, podemos assumir que eutanásia significa “boa morte”. É só isso que quero: uma boa morte. Parece-me razoável. Parece-me até que este é um desejo transversal à condição humana. Não percebo quem se opõe a uma boa morte quando, por falta de soluções, a vida já não o é.

Porque o seu tempo é precioso.

Subscreva a newsletter do SAPO 24.

Porque as notícias não escolhem hora.

Ative as notificações do SAPO 24.

Saiba sempre do que se fala.

Siga o SAPO 24 nas redes sociais. Use a #SAPO24 nas suas publicações.