Tive a sorte de poder conversar muito com ambos, sobretudo nas semanas a partir de dezembro de 1995, e no tempo seguinte.

A eleição presidencial para escolha do sucessor de Mário Soares estava marcada para 14 de janeiro de 96. Os candidatos eram Jorge Sampaio (veio a ser eleito logo à primeira volta, com 3 milhões de votos, 53,91%) e Cavaco Silva (46,09%). Também Jerónimo de Sousa, que veio a desistir, com apoio a Sampaio.

Na rádio pública, Antena 1, tinha entrado em funções uma direção liderada por Adelino Gomes, com David Borges e comigo como adjuntos. Entre as primeiras tarefas urgentes, para além da consolidação da redação do serviço público como referência de qualidade, estava o acompanhamento do fim da guerra que tinha devastado a ex-Jugoslávia e, ao mesmo tempo, a preparação da cobertura da eleição presidencial portuguesa.

O duelo político entre Sampaio (tinha conseguido a primeira união das esquerdas na eleição para a câmara de Lisboa) e Cavaco (dez anos na chefia do governo, oito deles com maioria absoluta) prometia alta intensidade.

Foi decidido formar dois painéis de comentadores. Um, para a análise diária, tinha Maria Elisa, Maria João Avillez, Miguel Sousa Tavares, Nuno Morais Sarmento e António- Pedro Vasconcelos. O outro, para a análise de momentos culminantes da campanha e para a noite eleitoral, formado pelos Eduardos, Prado Coelho e Lourenço.

Ambos residiam ao tempo em França. Prado Coelho, mais do que conselheiro, era embaixador cultural de Portugal em Paris. Eduardo Lourenço, vivia em Vence, no sul de França, desde o ano de 1969 em que, exilado, começou a integrar o corpo docente da Universidade de Nice.

Sabíamos que, apesar de estarem fora, seguiam com aguçada curiosidade tudo o que de relevante acontecia em Portugal. Pareceu-nos que esse interesse somado com a perspetiva mais ampla proporcionada pela distância geográfica, fazia daqueles dois mestres do pensamento os comentadores ideais.

Coube-me convidá-los e ambos, com a gentileza delicada de sempre, aceitaram de imediato, sem quaisquer especiais exigências. Apenas havia que tratar as viagens.

Ambos contribuíram para a elevação da qualidade do debate sobre Portugal e os portugueses no momento crucial da escolha do futuro presidencial entre dois modelos tão diferentes como os representados por Sampaio e Cavaco.

Foi muito enriquecedor ouvi-los filosofar, com toda a arte de bem conversar, sobre o lugar de Portugal naquela época e o que seria desejável para o tempo a seguir. Sempre, com sabedoria, a cruzarem a análise de especificidades pontuais com o enquadramento geral no país e na Europa. Sempre a puxarem o debate europeu.

Guardo na memória um ensinamento que Eduardo Lourenço repetiu e que Eduardo Prado Coelho corroborou: para a análise, precisamos de tempo, não podemos precipitar-nos a dizer e a pretender concluir e ter a última palavra sobre qualquer coisa. Há que ouvir as réplicas e continuar a refletir. 

Depois das eleições, Eduardo Prado Coelho continuou como comentador frequente, com muito amplo campo de interesses e saberes, na rádio pública. Eduardo Lourenço também, como membro do painel semanal “O Mundo de…”, criado e conduzido por Adelino Gomes, uma hora todos os sábados com, em rotação, Diogo Freitas do Amaral, Eduardo Lourenço, Francisco Pinto Balsemão, José Saramago, Maria de Lurdes Pintasilgo e Mário Soares.

Em dezembro de 98, na entrega, em Estocolmo, do Nobel da Literatura a Saramago, os Eduardos (Lourenço e Prado Coelho) fizeram, naturalmente, parte do grupo de convidados para a cerimónia. Na véspera do dia da entrega, entrei, com o José Guerreiro, outro repórter da rádio, no Grand Hotel de Estocolmo, reservado para as comitivas Nobel. Íamos ao encontro dos Eduardos para combinar a participação deles na emissão em direto na manhã seguinte. Estavam ambos a uma mesa, num varandim envidraçado sobre a marginal gelada, com duas pessoas, uma das quais imediatamente reconheci por tantas imagens vistas: Amartya Sen, ia receber o Nobel da economia. O outro na conversa era Walter Kohn, tinha para receber o Nobel da Química. Aquela conversa ilustrava, de modo iluminante, a curiosidade dos Eduardos na exploração entrecruzada de todas as áreas do conhecimento. Discutiam (vim a saber que tema lançado por Amartya Sem) sobre como a globalização, se mal enquadrada, poderia tornar-se uma bomba relógio para as democracias e levar à miniaturização das pessoas e sociedades, fechadas em egoísmos, designadamente no Ocidente. Os quatro convergiam (isso ficou num excerto da conversa consentido para a rádio) sobre a necessidade de cuidar a compreensão ampla da liberdade humana como antídoto para a cultura em ascensão de desenvolvimento de ódios.

O testemunho de Eduardo Lourenço naquela tarde fecha com o ensinamento de que nos falta viver a vida “em interrogação sem fim”.

No documentário, apresentado no começo deste ano, Resistir à Cegueira do Mundo, que Abílio Leitão e Fernando Luís Sampaio dedicaram a Eduardo Prado Coelho, ouvimos Eduardo Lourenço sintetizar “Ele não tinha o gosto do patético, do trágico, tinha o instinto, o gosto da felicidade”. Muito desta filosofia de vida foi comum a eles os dois.

Que falta que nos fazem estes Eduardos.