Mas o que era afinal, o Frágil? Uma discoteca (boite, como se dizia antigamente)? Havia várias boites conhecidas e em que era difícil entrar: das frequentadas pelos clientes mais conservadores (como o Stones) às mais fantasticamente contemporâneas (como o Alcântara).
O Frágil abriu portas, faz agora 40 anos (motivo desta modesta homenagem). Foi em 1982, sete anos depois da Revolução política que permitiu todas as liberdades, inclusive a dos “costumes”. Contudo, antes do 25 de Abril já existiam “boites”, algumas das quais continuaram a fazer sucesso por mais umas décadas.
Assim, numa rápida saída noturna que não pretende ser exaustiva, o conceito de discoteca, isto é, uma sala para se dançar sem orquestra, apenas ao som de discos, entre nós, nasceu em 1962, com o Caixote, atrás do cinema São José, em Cascais. A partir daí espalharam-se pela “linha” de Cascais: a Ronda, por cima da bomba de gasolina no Monte Estoril, e a maior das maiores, o “2001”, no Autódromo do Estoril. Em Lisboa, a movida passava pelo Ad Lib, no topo de um prédio na Rua Barata Salgueiro e o Vão Gogo, cingindo-nos apenas às mais badaladas.
Na sociedade do antigamente, com uma vincada separação de classes, quem ia a estes sítios eram os meninos da classe média que estudavam subsidiados pelos pais (os quais iam a boites doutro género, com orquestra, como o Wonder Bar do Casino Estoril ou a Choupana).
Fast forward para o pós-25 de Abril. A noite democratizou-se e a distinção de classes foi substituída pelos locais destinados aos mais velhos (os betos e as tias), saudosos das noites de bebedeira e despreocupação, e os sítios frequentados pelos mais novos, menos ralados com nomes de família e mais focados no estilo em voga. Nessa linha, nas décadas de 80-90, havia casas divertidas como o Trumps, o Kremlin e o Plateau. O termo casa de diversão noturna, assenta-lhes na perfeição, se considerado literalmente. Nem todos frequentavam todas as discotecas, a seleção fazia-se gosto musical, mais do que pela clientela. Talvez a mais fantástica dessas casas fosse o Alcantâra-Mar, uma discoteca grande, restaurante e bar, situada em Alcântara (perto de onde está agora a LX-Factory), em Lisboa.
Com o aparecimento do rock português, surgiram também os seus lugares de preferência, cujo ícon incontornável era o Rock Rendez-Vous (1980), dos Xutos & Pontapés. Aí, a música celebrava-se ao vivo, como acontecia esporadicamente nas casas “generalistas” com dimensões para uma banda atuar em palco, como o Alcântara-Mar.
Em junho de 1982 inaugura o Frágil, numa esquina da Rua da Atalaia, ao Bairro Alto, onde existira uma padaria. Estilo minimalista, sem decoração que se definisse – aproveitando aliás, os azulejos e o forno – com uma porta de entrada discreta e o DJ pendurado num balcão por cima do bar. Porque é que este cochicho se tornou algo de muito diferente e muito maior do que os inúmeros bares, boites, discotecas ou casas noturnas que começaram a despontar na altura?
Há quem diga que era pela seleção feita à porta, a cargo de uma figura obesa e arrogante, segundo critérios que nunca se percebiam e nada deviam à coerência, protegida por um latagão barbudo. Mas todos os lugares noturnos tinham uma “porta” (como se diz) que selecionava quem entrava, geralmente por ser “pessoa conhecida” ou por estar bem apinocada. Mas o critério desta porta, hermético e irritante que fosse, não era igual aos outros.
É que a ideia do Manuel Reis, o inventor da casa, era outra. O Frágil, sob a sua aparência inócua de música e drinks, era o que se pode chamar de plataforma logística para a Revolução Cultural em génese numa Lisboa rejuvenescida. Os clientes regulares do Frágil incluem todos os nomes de quem fez contribuiu para essa revolução, fosse na moda, no cinema, teatro, artes visuais, ou nos acontecimentos culturais marcantes que fizeram a época.
Querem nomes? A lista é, felizmente, extensa. Alguns exemplos: António Variações, Jorge Palma, João Botelho, Gonçalo Byrne, Ana Salazar, Pedro Cabrita Reis, José Ribeiro da Fonte, Eduarda Abondanza, Manuela Gonçalves, Vicente Jorge Silva, Seixas Santos, Felipe Faísca, Paula Moura Pinheiro, José Pedro Croft, Julião Sarmento...
Assim, de repente, vêm tantos nomes à cabeça que é impossível fazer justiça a todos. O que se pode dizer, é que os responsáveis pelas artes, puras e aplicadas, que fizeram o ressurgimento cultural de Lisboa, frequentavam o Frágil. Não combinavam lá ir, reparem; apareciam e tinham conversas casuais que culminaram em muitos projetos marcantes de que todos beneficiámos, e fizeram muitos nomes famosos.
Dizer que Manuel Reis foi um empresário da noite, é reduzi-lo ao nível dos outros empresários da noite – pessoas interessantes, empreendedoras e bem-sucedidas, é certo, mas cuja atividade era criar e fazer prosperar lugares noturnos. Manuel Reis era o aglutinador e impulsionador de pessoas e atividades que brilharam à luz do dia e que tinham naquele sítio um ponto de encontro. Às vezes financiava, outras arranjava financiadores, outras ainda juntava as pessoas que precisavam de se juntar, dava ideias que ele próprio desenvolvia, ou potenciava ideias que eles tinham.
Para a maioria das pessoas, o Frágil era apenas um sítio onde era difícil entrar; quando conseguiam passar o críptico crivo da porta, o que viam lá dentro era o mesmo que viam em qualquer outro lugar noturno; gente a conversar, a beber, a dançar e a divertir-se. Conseguiam identificar algumas caras que já tinham chegado ao noticiário e não reconheciam outras figuras que fizeram uma mudança significativa naquilo a que chamamos, muito apropriadamente, uma revolução cultural.
O Frágil teve satélites, onde iam algumas dessas pessoas, como Os Três Pastorinhos, o Capitão Kirk e o bar Nova. Era um circuito, dentro da confusão, que, entretanto, o Bairro Alto se tinha tornado. Esse circuito também incluía alguns restaurantes – acima de todos, o Pap’Açorda e logo a seguir outros, como o Casa Nostra e o Fidalgo.
Em 1998, Manuel Reis decidiu mudar de escala. A “movida” de Lisboa tornar-se gigantesca e já não podia ser contida num cantinho onde cabiam talvez cem pessoas. Surge assim o Lux (nome completo: Lux Frágil) instalado num edifício industrial frente à estação de Santa Apolónia. Tal como o seu antecessor, não é possível classificar a decoração, mas o ambiente não deixa ninguém indiferente; é uma combinação arrebatadora de luz e som, distribuída por três espaços onde cabem umas centenas de pessoas. As suas dimensões permitem fazer festas superlativas, com decorações faraónicas que ficaram na memória coletiva.
Com a internacionalização de Lisboa, a noite, a cidade e o país evoluíram para um mundo mais cosmopolita. Os agentes da revolução reformaram-se, morreram, foram para outros projetos e para o mundo. Não se pode pôr uma data nesta mudança; contudo, simbolicamente, a baliza temporal terá ocorrido em 2018, com a morte de Manuel Reis, aos 71 anos.
Deixou o Lux aos empregados. Depois de dois anos difíceis, por causa da pandemia, a casa renasceu com o mesmo estilo e entusiasmo. Agora, tem um público maioritariamente estrangeiro, como tudo em Lisboa. Certamente que não poderá prolongar a criatividade do criador – até os convites das festas eram verdadeiras peças de arte, coleccionáveis. Mas está lá, como herança, numa espécie de monumento vivo às décadas em que os lisboetas fizeram e celebraram o seu alinhamento com a contemporaneidade.
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