“Uma sociedade em estado de emergência permanente não pode ser livre.” Quem o diz é o pensador italiano Giorgio Agamben, mas poderia ser uma afirmação do Senhor de La Palice, de tão evidente que é. No entanto, há muitos tipos de estados de emergência, como há muitos tipos de autocratas, desde aqueles que recorrem a uma aparência constitucional (como Viktor Orban) aos que não escondem o seu domínio sobre os súbditos (como Xi Jinping).

A questão que se coloca é se as medidas de excepção a que a situação sanitária tem obrigado, fortes ou mais limitadas, não serão irreversíveis. Ou, colocando-a de outra maneira, se o mundo que vai sair da pandemia não será mais autoritário.

Os avisos vêm de todos os lados: Paul Krugman, o economista estrela do “The New York Times”, avisa que “o autoritarismo pode estar ao virar da esquina”. O filósofo esloveno Slavoj Zizek diz que vai acabar o mundo como o conhecemos e que ”só um novo tipo de comunismo e um governo mundial podem salvar a liberdade”. E um outro filósofo, alemão, Josef Joffe, avisa que as democracias ocidentais se tornarão tão autoritárias como o regime chinês, o grande vitorioso da presente situação.

Krugman escreve concretamente sobre eleições no Estado do Wisconsin, mas está implícito que a probabilidade já está instalada em Washington e, por extensão do seu raciocínio de que a pandemia é uma boa desculpa, pode ocorrer noutros países. Trump, com a sua personalidade autoritária, tem tentado, por todos os meios constitucionais possíveis, aumentar e exercer um poder executivo acima dos outros dois. Ainda não aconteceu, mas é provável que venha a usar a catástrofe sanitária para adiar as eleições de Novembro. Se perceber que os seus avanços e recuos em relação à pandemia põem em perigo a vitória eleitoral, é o que fará certamente. No fundo, é a mesma lógica que levou à decisão contrária no Wisconsin – que se vai fisicamente às urnas, mesmo sendo perigoso – decisão essa sancionada pelo Supremo Tribunal Federal, onde Trump já tem uma maioria de juízes. No caso do Wisconsin, os republicanos queriam manter as eleições porque acham que podem perder o domínio que atualmente têm no Estado; no caso das Presidenciais de Novembro, se as sondagens lhe forem desfavoráveis, Trump tentará adiar para beneficiar da sonhada retoma pós-crise. Em ambos os casos, temos o aproveitamento da Covid-19 para interpretar a Constituição duma forma mais favorável politicamente.

Pode dizer-se que Trump é o caso mais “suave” de tentativa autoritária, não porque ele seja suave, mas porque o sistema constitucional norte-americano tem várias prevenções contra um desequilíbrio dos três poderes e a opinião pública, se bem que dividida, é contra mudanças na Constituição. E o país tem uma comunicação social vigilante que está sempre à espreita do perigo, como se vê em Krugman.

Antes de continuar a lista das variações autoritárias, é interessante notar que existe uma espécie de sincronismo universal entre conservadorismo/autoritarismo e a negação do impacto da pandemia, e entre liberalismo e a preocupação com esse impacto. Este fenómeno verifica-se, por exemplo, nos estados dos EUA, onde os governadores republicanos acham mais importante relançar a actividade económica, e os governadores democratas dão prioridade à saúde pública.

Também noutros países (para não dizerem que falamos só dos norte-americanos) se observa, de boca aberta, a mesma atitude. Boris Johnson, no Reino Unido, foi um caso desses. Começou por minimizar a problema, depois adoptou a teoria macabra da “imunidade de rebanho” (se todos apanharem a doença, os que escaparem ficam imunizados) e finalmente teve que fazer marcha atrás, ou mais exactamente andar em frente, instituindo o confinamento social. Acabou sendo ele próprio infectado, porque bela boca morre o peixe.

Mas o mais folclórico será, talvez, o Presidente, dono e senhor da Bielorússia, o inimitável Alexander Lukashenko, que mistura o autoritarismo estilo Putin com uma postura machista género Bolsonaro – homem que é homem não tem medo duma gripe. Lukashenko, tal como Bolsonaro, faz questão de promover frequentar e grandes ajuntamentos de público, enquanto afirma que a pandemia é “uma psicose”. O resultado, como relata o “The Guardian, é que o combate à doença tem sido feito por ONGs e grupos criados ad hoc para suprir a completa ausência do Estado. O sistema de saúde da Bielorrússia é, digamos, precário, e há falta de tudo mesmo para a gestão corrente, quanto mais uma emergência. Foram os particulares que juntaram quase 115 mil euros e compraram milhares de ventiladores e equipamentos para o pessoal médico. No mercado negro, uma máscara das mais simples custa 14 euros.

Lukachenko já um autocrata há muito tempo; Bolsonaro, que pensa como ele, ainda é contido por um sistema constitucional – corrupto e ineficaz, mas com eleições, imprensa livre e os demais benefícios da democracia liberal. O Presidente brasileiro ainda não percebeu as oportunidades autoritárias que a pandemia pode proporcionar, mas tem exercido o poder que a Constituição presidencialista lhe dá para obrigar o país a funcionar em pleno, sem preocupações de saúde. Mesmo com mais de dois mil mortos, 30 mil casos confirmados (os números sobem diariamente, já se sabe) e o receio de que o número de infectados seja colossal, Bolsonaro discordava da política pró-prevenção do seu ministro da Saúde, Henrique Mandetta, e acabou por demiti-lo, substituindo-o por Nelson Teich, um oncologista sem experiência sanitária mas mais dócil.

Numa postura que podia fazer parte do programa “Gente que não sabe estar”, Bolsonaro afirmou recentemente que “o Governo não pode estar a pagar por muito tempo o auxílio aos pobres”.

Claro que o mais famoso ditador que tem usado o drama provocado pelo coronavírus para consolidar o seu poder é Xi Jinping. O prócere chinês “controla a narrativa”, como se diz agora, de acordo com os seus interesses, que são os interesses do Partido e os interesses da China.

Nada que não se esperasse de um Presidente vitalício.

Muito mais interessante, do ponto de vista de tomada do poder, é o caso de Viktor Orban, o primeiro-ministro da Hungria. Mais interessante porque se dá dentro do espaço europeu, democrático e consensual, e porque é um caso típico de aproveitamento do mal para consolidar a autoridade.

Desde 2011, quando o seu partido de direita, Fidesz, ganhou uma confortável maioria parlamentar, Orban tem vindo a consolidar o poder através de pequenos passos, para não perder os fundos generosos que recebe da União Europeia. E, sempre que a UE franzia o sobrolho, fingia que voltava atrás, sem realmente voltar. Aos poucos tomou conta da comunicação social e escolheu os juízes certos para o Tribunal Constitucional, sempre mantendo os húngaros unidos num fervor patriótico contra os imigrantes em geral e os muçulmanos em particular.

Agora, apesar da Hungria não ter mais do que 1800 casos e 156 mortos, numa população de dez milhões de habitantes, usou o estado de emergência para governar por decreto por tempo indefinido. E um dos primeiros decretos determina que ninguém pode publicar ou publicitar notícias que sejam prejudiciais à luta contra a pandemia – sendo que qualquer opinião contra ele prejudica essa luta.

O mesmo está a acontecer na Polónia, onde Partido Lei e Justiça (dos famigerados irmãos Kaczynski) tem seguido a mesma linha, com tons religiosos, tirando partido do forte catolicismo da população. Por exemplo, em Dezembro, proibiram os juízes de seguir as decisões dos tribunais europeus e agora excluíram do lockdown as igrejas, para que as pessoas possam ir pedir alívio ao Altíssimo. Fala-se que se vão aliar ao partido da extrema-direita, Konfederacja, que teve 1.2 milhões de votos nas eleições de Outubro.

Em ambos os casos, a União Europeia, emasculada e sempre hesitante, não tem passado de admoestações e ameaças. Não quer ter ditaduras no seu seio, mas também não quer perder membros...

Estes são apenas alguns exemplos de como a pandemia está a favorecer o autoritarismo. Estranhamente, os partidos de direita autoritária europeus têm estado muito calados. Onde anda a senhora Le Pen? E Matteo Salvini, derrotado em 2019, quando se preparava para ser primeiro-ministro? Em que buraco se escondeu Steve Bannon o guru deles todos?

Tudo indica que quando a poeira assentar – isto é, a pandemia passar a ser uma gripe, com remédios e vacinas – muitas das saudáveis liberdades que certos países tinham como garantidas também se terão transformado em doenças crónicas.