Historicamente, a Turquia como grande potência regional nasce em 1453, quando os otomanos conquistaram Constantinopla, provocando a queda do Império Romano do Oriente. Os senhores turcos passaram a chamar-se califas, um título muito disputado entre os muçulmanos, mesmo até hoje – Abu Bakr Al-Baghdadi, o chefe supremo do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, vulgo ISIS ou Daesh, considera-se o único e verdadeiro califa.

O título foi usado pela primeira vez por outro Abu Bakr, o sogro de Maomé, em 632. Desde então, o estatuto passou a ser reivindicado por qualquer senhor da guerra que achava ter território e poder para tal, e o califado inicial dividiu-se em dois e partiu-se em três, até que Saladino, nascido no Egito, o unificou no século XII, na altura das Cruzadas. Com a sua morte, novas disputas e divisões surgiram, nomeadamente os califados Fatimita e Abássida. Mas, com a passagem dos anos, o único Califado merecedor desse nome, tanto em extensão como em poderio, era o otomano, sediado em Constantinopla. O apogeu terá sido no século XVI, com Suleiman, o Magnífico (cujo palácio das mil e uma noites ainda podemos apreciar, em Istambul).

Conquistados os territórios a sul do Mediterrâneo, os califas otomanos viraram-se naturalmente para o Norte e Leste. Durante séculos tentaram invadir a Europa, quer através da Macedónia como da Grécia; defrontaram-se com os persas e os russos, e tentaram dominar o comércio entre o Oriente e o Ocidente, em luta permanente com as repúblicas italianas. Quem se interessa por História lembra-se com certeza das disputas entre Istambul e Veneza, ou as tentativas otomanas de desmontar o comércio português no Golfo Pérsico. Lord Byron, o romântico inglês (que disse que Sintra era uma pérola atirada aos porcos...) morreu a combater pelos gregos contra os turcos, em 1824.

Até ao início do século XX, o Califado Otomano esteve em guerra permanente com os russos e os persas, para não falar das várias invasões do continente europeu que os húngaros, diga-se em abono da verdade, aguentaram estoicamente com muito pouca ajuda do resto da cristandade.

Este foi o período expansivo do Califado, que terminou abruptamente em 1908 com um golpe de Estado militar. Formou-se um triunvirado, os Três Paxás, que tentou sobretudo consolidar o território ainda dominado pelos otomanos, massacrando sem piedade os arménios, assírios e gregos que estavam ao seu alcance. O califa manteve-se nominalmente, com o título de Sultão. Mas na I Guerra Mundial os otomanos escolheram o lado errado e foram derrotados a toda a linha pelos poderes aliados, especificamente a França e a Grã-Bretanha. Perderam a Península Arábica (o Lawrence, lembram-se?) e, suprema vergonha, Constantinopla foi ocupada pelos britânicos.

Pode dizer-se que 1918 marca o fim do último califado, embora a data oficial seja 1923. O que restava do exército turco, comandado por Mustafá Kemal, expulsou os ocupantes em 1922 e no ano seguinte fundou a República da Turquia, laica e ocidentalizante. Kemal, escolhido pelos militares para Presidente da República, promoveu reformas seculares radicais, como por exemplo a proibição do fez para os homens e do véu para as mulheres. Incensado e venerado, foi nomeado por aclamação parlamentar “o pai da Turquia”, Atatürk.

A partir desta época, os turcos passam a praticar uma política externa completamente diferente; em vez de atacar a Europa, querem integrar-se nela. Na II Grande Guerra conseguem manter-se fora do conflito, evitando assim sofrer as consequências duma disputa que não lhes interessava.

Assim, em 1949 são aceites no Conselho da Europa e em 1963 na Comunidade Económica Europeia. No novo esquema mundial da Guerra Fria, a posição do país junto à fronteira da União Soviética cai como mel nos interesses estratégicos ocidentais e o país entra para a NATO em 1953.

Em 2005, a Turquia pede para aderir à União Europeia – e é aqui que as coisas se começam a complicar. É que na verdade os europeus, embora achassem muito interessante ter o tampão da Turquia na frente Sul – contra os soviéticos e contra o mundo islâmico em geral – não tinham perdido a memória de séculos de guerra. Além disso, por muito que os otomanos se quisessem ocidentalizar, permaneciam muçulmanos e mantinham um notório atraso em relação às liberdades e avanços sociais da Europa. Conservavam um feroz nacionalismo – atitude entretanto em desuso num continente à procura de convergência supranacional – e cultivavam atitudes mal vistas, como a censura à imprensa, ou a repressão às suas minorias étnicas (os curdos em particular), além de se terem metido na “questão” de Chipre com uma certa brutalidade.

À medida que os anos passavam e a Europa não havia maneira de os aceitar de pleno direito, os turcos começaram a reverter para uma “orientalização” nada conveniente para os europeus. Em 2002, 2007 e 2011, uma força política de inspiração discretamente islamista, fundada em 2001, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) ganhou as eleições, com um número crescente de votos. O seu fundador e líder incontestado, Recep Tayyip Erdogan, não escondia as tendências religiosas e autoritárias. A perseguição aos curdos tornou-se muito violenta. Os militares, que mandavam não oficialmente no país desde 1923, garantindo a laicidade e as reformas ocidentalizantes, foram afastados cada vez mais do poder, ou através de reformas discretas, ou reprimidos abertamente sempre que tentavam manter o estatuto e ideário. Para Erdogan, era fácil apresentá-los à população como antidemocráticos, uma vez que ele fora eleito e eles não.

Entretanto, também o xadrez político internacional mudou, com as chamadas “primaveras” nos países muçulmanos da bacia mediterrânica, o desaparecimento da União Soviética – substituída, também ela, por uma Democracia aparente, dirigida de forma autoritária – e a confusão e decadência da União Europeia. Estes fatores e outros concomitantes, como a “questão” dos refugiados sírios, o aparecimento do Daesh e o esfacelamento da Síria, tudo se conjugou para Erdogan dar o passo seguinte em direção ao objetivo que agora parece evidente: a recriação do Califado Otomano (adaptado ao vocabulário dos novos tempos, com certeza) e o apagamento do espírito que presidiu à República de Atatürk.

A última intentona, de Julho de 2016, marcou o fim definitivo da influência militar e também duma sociedade civil intelectual e progressista. Erdogan aproveitou ou golpe, ou inventou-o, para medir o apoio popular e abrir caminho para a sua permanência. Não deixa de ser sintomático, embora de importância menor, que um dos seus últimos decretos antes deste plebiscito tenha sido autorizar as mulheres dos militares a usar o lenço islâmico...

O califa de Raqqa bem pode dizer que é o único e o verdadeiro; o desaparecimento do Daesh, pelo menos como estado com território, é só uma questão de tempo. Foi brutal demais e radical demais, para ser aceite pelo mundo muçulmano, que tem muitas tendências e interesses. Em compensação, a Turquia tem a massa crítica, o poder e a situação no xadrez internacional para voltar ao califado sem grande oposição. Erdogan sabe o que faz.

(Correção no artigo: alteração da data do fim do Califado - 1908 e não 1930)