1. Ontem aconteceu uma coisa rara numa sala de aula. Quando nos levantámos das cadeiras, pessoas que não se conheciam antes abraçaram-se. Uma necessidade difícil de explicar para quem não tivesse o coração partido como nós. Tínhamos chorado juntos, sentados, no escuro. E era difícil falar quando nos levantámos. Fui abraçar a realizadora do documentário brasileiro que nos juntara. Quando voltei, um académico brasileiro abraçou-se a mim. Nunca nos víramos até ontem, e estávamos a milhares de quilómetros do Brasil, numa sala de aula da Universidade do Michigan, onde acabava de ser projectado “O Processo”, de Maria Augusta Ramos.
2. Não consegui coincidir com este filme no Indie Lisboa, onde foi grande premiado, como tem acontecido em vários festivais no mundo. E ainda me desencontrei dele em mais alguma ocasião. Não sei como teria sido vê-lo há meses, quando nem os pessimistas antecipavam o que está já a acontecer no Brasil. Todos os relatos que me chegaram então davam conta de um filme poderoso, emocionante. Mas ninguém poderia supor que neste Outubro negro, a nove dias das eleições, o fascismo mais demente já estivesse nas ruas do Brasil, a prometer às mulheres um rato na vagina, a anunciar a tortura, a ditadura, a morte. A matar, já.
Por tudo isso chorámos juntos ontem, vendo ao longo de duas horas e dezasseis minutos como o horror se desencadeou institucionalmente, usando as cadeiras, as mesas, os plenários, os edifícios da utopia democrática. O espectáculo de uma caixa de Pandora a ser aberta diante de um país de 200 milhões, dos olhos do mundo, aos olhos de todos. A Besta a desenrolar os seus tentáculos, apropriando-se dos protocolos, das câmaras de vídeo. Estava tudo lá, naquelas caras pálidas, ignaras, obscenas, que tomaram Brasília. Naquele sorriso escarninho de Jair Bolsonaro honrando o torturador de Dilma. Naquele olhar louco, naquela máscara que é a cara de Janaína Paschoal, a acusadora de Dilma. Se o perigo se vê numa cara, isso está na cara deste filme.
3. Há um momento em que um dos defensores de Dilma acusa Janaína de fazer drama em vez de agir como jurista, como se estivesse a preparar uma futura candidatura política. É um dos incontáveis momentos deste documentário em que assistimos ao passado próximo a partir do futuro, esmagados pela forma como o futuro estava lá, em detalhe. Com a sua única câmara, sem orçamento, sem nem fazer ideia do que iria fazer com aquilo, se seria um filme, que filme seria, Maria Augusta Ramos regista em Agosto de 2016 Outubro de 2018. Filma o horror que nos iria bater na cara agora.
A acusadora Janaína, essa actriz inacreditável que nenhum teatro, nenhuma ficção conseguiria produzir, porque a vemos com a perplexidade de sabermos que não é uma actriz, teve dois milhões de votos no passado dia 7. Um resultado histórico, inédito para qualquer deputado no Brasil.
Sim, ela estava mesmo a preparar a sua candidatura. Ela era mesmo um dos tentáculos da Besta, literalmente a alongar os bícepes na primeira imagem em que aparece no filme, a preparar-se para o roubar, para devorar um país. Vi aqueles braços, aqueles globos oculares rolando, como se analisassem os humanos em volta, aqueles cabelos negros das serpentes da mitologia, aquela boca de joker, esticando em automático ao detectar uma câmara. Janaína: que monstro. Construído como filme de tribunal, “O Processo” é um filme de terror.
Mais negro do que isso. “O Processo” é um documentário de terror. E cada dia que passou, desde a estreia em Berlim, só lhe acrescentou espessura, presciência, revelação. “O Processo” é uma sibila.
Vejam-no, debatam-no, estudem-no, mostrem-no em salas de aulas. É preciso vê-lo agora, e no futuro. Admirável como documentário, poderoso como documento, não apenas do Brasil, mas da corrupção da democracia, da corrupção da humanidade.
4. Nascida em 1964, o ano do golpe militar, Maria Augusta Ramos cresceu em Brasília, essa náufraga do que o génio humano sonhou, esferas e ângulos, côncavos e convexos, horizontais e verticais. E esse sonho está no filme, é nele que estão aqueles deputados, aqueles senadores, aqueles juízes, aqueles esgares, os Aécios da mentira e da corrupção, homens brancos, atafulhados de dinheiro, o pior dos Brasis na utopia que ia ser o Brasil. O pior do humano no melhor do humano: criação, beleza.
Em “O Processo”, não é só Dilma que cai, a democracia que cai, a justiça que cai. É Brasília que cai. Niemeyer. A utopia.
5. Maria Augusta Ramos não precisa de acrescentar nada ao que está a acontecer. Com apenas uma câmara, duas quando se trata de plenário, ela filma o que acontece em público, um pouco nos relvados de Brasília, com manifestantes pró-Dilma e anti-Dilma, mas sobretudo dentro do Congresso. E o que está a acontecer no círculo do PT que defende Dilma, nas reuniões de estratégia, nos telefonemas, nas pequenas conversas. Aí, os grandes protagonistas são a senadora Gleisi Hoffmann e esse grande político chamado José Eduardo Cardozo. Nunca me esqueci, quando morava no Brasil como correspondente, como Cardozo, então ministro da Justiça, foi capaz de uma sinceridade brutal ao falar das prisões no Brasil. Ele disse, enquanto ministro, esta frase: “Do fundo do meu coração, se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, eu preferia morrer.” Não é um homem qualquer que diz isto. E “O Processo” mostra bem a qualidade, a capacidade dele. Também mostra uma coisa raríssima, o que o PT não foi capaz de comunicar ao Brasil nesta eleição trágica: a auto-análise pêtista. É um momento curto, de extraordinária força, em que o pêtista Gilberto Carvalho fala dos erros do PT numa dessas reuniões durante o impeachment de Dilma. Impossível não pensar como é possível que aquelas palavras não tenham chegado até agora aos ouvidos dos brasileiros, penetrado no coração de alguns milhões. Ou seja, como é possível que o PT não as tenha conseguido dizer.
6. Cheguei ao Brasil como correspondente no momento em que Lula ia passar a bola a Dilma, na campanha presidencial de 2010. Segui-a em campanha, e depois no governo. Mas nunca entendi realmente Dilma. Nunca entendi o que era feito daquela menina barbaramente torturada pela ditadura brasileira, em que mulher ela se tornara. A (não) posição de Dilma sobre o aborto foi uma entre muitas perplexidades. Gleisi Hoffman tem razão em dizer no filme que as mulheres não reconheceram realmente nela uma líder. E se há uma figura que “O Processo” não revela é Dilma. O filme é sobre o processo que levou à sua queda, é sobre o que no Brasil existe que levou a isso, como isso aconteceu em plena democracia, como a forma se sobrepõe à substância, a burocracia à justiça. Não é sobre Dilma. Talvez também porque de facto Dilma não é uma figura clara. É difícil dizer quem ela é. Ela foi instrumental num processo. Mas esse processo não é sobre ela.
Isto dito, alguém que passou pelo que ela passou, particularmente demonizada por ser mulher, merece um tributo. Dilma certamente não ficará no lado errado da história.
7. Não há, então, entrevistas para a câmara, narração, vozes off, em “O Processo”. Maria Augusta Ramos filmou centenas de horas de material público, e material de acesso mais restrito, e depois editou-as incansavelmente com a montadora Karen Akerman. O único acrescento são quadros negros entre algumas secções do filme, e quadros negros com informações sobre datas e momentos do processo. E o resultado é não só potente como claro, ao ponto de qualquer espectador no planeta poder ser arrebatado pelo filme. Os prémios internacionais comprovam isso. A sobriedade do filme é a forma perfeita para a estridente tragédia que se desenrola nele.
8. Vi-o ao lado do escritor brasileiro Luiz Ruffato, camarada de há anos, naquela sala do Michigan. Começáramos o dia juntos num anfiteatro de Ann Arbor, abrindo uma conferência em que o tema era: “Democracia em questão: o que faz, e pode fazer, a cultura.” Estavam lá muitos académicos brasileiros, vindos de diferentes universidades dos EUA. Já nos tínhamos emocionado ao falar do Brasil. Uma bolsa de gente com o coração a sul, perambulando entre as folhas douradas, vermelhas de um histórico campus norte-americano, aqui onde Trump parece um pesadelo longínquo.
Bolsonaro não é Trump, é muito pior. Porque a frágil, jovem democracia brasileira não tem as estruturas e mecanismos da democracia estado-unidense, com todos os seus problemas. E porque o horror de Bolsonaro já está nas ruas, activo, a espalhar medo e morte. Até dia 28 estamos na luta para que ele não seja eleito, mas de coração partido pelos que já estão a ser agredidos, ou pensam duas vezes antes de sair à rua.
À tarde, durante o filme, o Luiz chorou a meu lado, e passou-me um lenço de papel, que continuei a apertar na mão muito depois de o filme acabar. Estávamos todos assim, vários brasileiros e pelo menos três portugueses na sala (ao lado de Ruffato, Pedro Meira Monteiro, logo atrás Pedro Schacht, Clara Rowland). E a realizadora Maria Augusta Ramos, que já viu o filme centenas de vezes, e tem falado dele em tantas sessões, estava tão emocionada como se de novo. Porque é de novo, a cada dia que passa. Temos todos que lhe agradecer, muito mais do que ainda sabemos.
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