(1) Covfefe e (2) desculpas

É difícil de acreditar, mas às vezes o que parece é! Conheço quem tenha genuína dificuldade em perceber Donald Trump e julgue ver em todos aqueles problemas e guerras intestinas na Casa Branca uma espécie de estratégia. Por trás haveria um plano maquiavélico para controlar o mundo. O que vejo, no entanto, é um homem velho, obcecado com canais de notícias, com ideias muito próprias sobre política e economia, que adormece a meio dum tweet (“covfefe” quer apenas dizer “bah, vou mas é dormir”), rodeado de gente com ideias diferentes em luta permanente e que avalia a sua própria acção pelo prisma das notícias da manhã dos canais lá do partido. Lá atrás, Washington continua nas suas zangas e políticas, como sempre.

Nada disto serve para desvalorizar o homem: a situação é muito perigosa, bem mais perigosa, se preciso for, do que se houvesse mesmo um plano maquiavélico. Se esse plano existisse, o futuro próximo seria um pouco mais previsível: bastaria conhecer o plano. Mas não existe.

Já Hillary… Enfim, anda a tentar arranjar desculpas para o que aconteceu em Novembro. Ainda esta semana acusou os funcionários do seu partido de não lhe terem dado dados atualizados sobre os eleitores. Sim, ela é uma candidata frustrada que ainda não sabe o que fazer com a derrota.

Também Obama, para desilusão de alguns, fez o que seria de esperar: aproveitou a reforma para ir para ilhas paradisíacas com amigos ricos e ainda cobra fortunas pelos seus discursos.

Ou seja, são gente normal — sim, riquíssimos, com um poder extraordinário, mas absolutamente humanos.

Isto não quer dizer que são todos iguais uns aos outros. Não, Obama é muito diferente de Trump. E, se Hillary tivesse ganho, nem tudo seria igual…

Não, o que digo não é isso. O que digo é que eles são diferentes uns dos outros, mas muito parecidos a todos nós. Todos conhecemos um tio velhote com ideias parecidas com as de Trump, uma senhora que perdeu as eleições da freguesia e ainda hoje não aceita o que aconteceu, um amigo que arranjou algum dinheiro e passa as férias nas Seychelles, enchendo-nos o mural de Facebook com fotografias de água demasiado azul.

E, tal como na nossa vida, há quem faça o esforço de trabalhar um pouco melhor todos os dias e quem não queira saber...

(3) Estupidez e (4) inteligência

Somos seres humanos e raramente temos a inteligência e o poder para melhorar o mundo. O grande problema é que aqueles que têm poder também não têm a inteligência necessária. E a culpa não é deles: aquilo que separa o mais estúpido do mais inteligente dos humanos é muito menos do aquilo que separa a mais inteligente das pessoas daquele humano impossível que tudo saberia para nos poder governar com tino.

Lembre-se o leitor: o cérebro humano é mais complexo que a atmosfera e nós não conseguimos prever o tempo para lá duns quantos dias. Como saberíamos prever os efeitos das nossas acções nas sociedades complexas de hoje em dia?

A sabedoria — digo eu hoje, que amanhã é outro dia — tem muito a ver com saber lidar com os nossos próprios limites. E há muita gente inteligente, com muita informação e, mesmo assim, com muito pouca noção desses limites.

Mesmo entre muitos inteligentes, há dificuldade em perceber um facto essencial dos seres humanos: há dias em que estamos mais despertos, outros menos; há temas em que percebemos muito da coisa, outros em que somos pouco mais do que nabos — e nem sempre sabemos distinguir uns dos outros. Às vezes, esses temas aparecem todos numa só conversa de cinco minutos. Começamos a falar do que percebemos e resvalamos para assuntos em que só dizemos disparates — mas a fronteira, essa, é invisível.

Há ainda quem seja muito estúpido à mesa do café, entre amigos, e depois diga umas coisas acertadas à noite — e vice-versa. E há ainda quem seja óptimo a dissertar sobre um assunto complexíssimo e não faça ideia de como governar um país — só que, sendo inteligente na sua área de especialidade, tem dificuldade em admitir o pouco que sabe doutros assuntos.

Onde quero chegar com isto? Não sei bem. Talvez a isto: os rótulos «estúpido» e «inteligente» assim, aplicados a frio, são muito pouco inteligentes. E, mais: é bem provável que estejamos todos mais próximos da estupidez absoluta do que da inteligência absoluta.

Meu caro leitor, não fique triste: há bons momentos na vida — e teremos sempre os jacarandás de Lisboa.

(5) Democracia

Ora, aqui chegamos ao problema para o qual não temos solução: como escolher quem nos há-de governar?

Há quem veja os resultados das eleições e fique desesperado. Se calhar isto de dar os votos a todos não é boa ideia. Afinal, a população é tão estúpida… Mais vale escolher os bons sem perguntar nada aos estúpidos (normalmente logo a seguir vem uma citação de Platão).

Há dois problemas: primeiro, com que critério escolhemos os bons? Como disse acima, a resposta não é assim tão fácil.

E, depois, temos isto: é sempre mais fácil enganar ou manipular um grupo restrito, por mais inteligente que seja, do que uma sociedade inteira. Isto não quer dizer que a sociedade não seja manipulável: mas um pequeno grupo de eleitores iluminados ainda o é mais — mais vale limitar o estrago deixando tudo à vista de todos e, ao fim duns anos, que venham todos e decidam.

Sim, bom era termos uma democracia de eleitores cultíssimos e informadíssimos e todos os superlativos que tivéssemos à mão. Aliás, admito: ainda não estamos preparados para dar os votos a todos. Só que não temos solução que não seja começar antes de estarmos preparados. E, já agora — esta parte é importante — convém termos mecanismos para que os erros não se perpetuem. Que mecanismos? Eleições regulares, diferentes poderes em vigilância contínua, constituições e leis, toda essa tralha aborrecida.

Mais vale vivermos com as más decisões provisórias de todos os eleitores do que com as decisões dum pequeno grupo de sábios, às vezes tão ou mais erradas do que as outras e bem mais permanentes.

Marco Neves é autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa.