Aí por volta dos vinte e muitos já ninguém tem dúvidas: quem chega a nossa casa sabe que vai encontrar livros onde nenhum decorador se lembraria de os deixar e sabe que vamos ter livros a sair do bolso dos casacos, livros em cima dos bancos dos carros, livros dentro das malas, livros debaixo do braço, livros na mesa do jantar…

A tribo dos acumuladores de livros tem alguns segredos. Aqui estão alguns deles.

1. Compramos mais livros do que conseguimos ler

A resposta à eterna pergunta «mas já leste estes livros todos» é «não». Se alguma vez os lerei a todos? Talvez, mas para isso tenho de parar de comprar novos livros, o que é pouco provável.

Certamente que já li partes de todos estes livros, que já li a totalidade de alguns, já reli alguns outros, já fiz e desfiz pilhas de livros por ler, já os juntei, separei e voltei a juntar, já li cinco ao mesmo tempo, fui deixando para trás alguns deles, voltei a pegar noutros anos depois — e outras combinações: li um livro inteiro entre o capítulo 2 e 3 de outro, deixei alguns no penúltimo capítulo e por aí fora.

Conheço algumas pessoas que afirmam ter lido todos os livros que têm em casa. Somos uma tribo diversa e (quero acreditar) tolerante. Mas quem diz isto ou tem muito poucos livros (o que poderá ser uma necessidade) ou passa demasiado tempo a ler coisas de que não gosta. Ou então engana-se a si próprio: porque outro dos segredos bem guardados é este: podemos não ler os livros todos que compramos, mas quando compramos um livro, a nossa intenção é lê-lo.

2. Se não souberem onde estamos, procurem numa livraria

De cabeça para o lado e para o outro ao sabor da direcção das lombadas — assim gostamos de estar muito mais tempo do que aguenta a paciência de quem nos acompanha. Lá pegamos neste ou naquele livro, deixamos de lado, espreitamos lá para trás, farejamos os nossos autores favoritos, passamos a conhecer as prateleiras das nossas livrarias de tal maneira que percebemos quando alguém andou ali a mexer ou a desarrumar.

Quando penso em cidades onde gostaria de viver, a primeira imagem que me vem à cabeça são as livrarias. Não me consigo imaginar a viver no sítio onde não possa procurar livros que ainda não conheço.

Mesmo nas férias, não desdenho de estar alguns dias numa qualquer praia ou à beira duma piscina a descansar ao sol (com um livro na mão), mas para mim o prazer absoluto em viagem é um sítio com muitas livrarias. Sou um bicho de cidade, muito por causa de pertencer a esta tribo.

3. Damos demasiada importância ao aspecto dos livros

Parece um sacrilégio, mas por vezes julgamos um livro pela capa. E pelo papel. E pelo tipo de letra. E pelo cheiro. E pelo peso. E pela textura. E por tudo o mais que está para lá do texto. Os livros são objectos e temos um verdadeiro desejo quase doentio por afagar-lhes a capa. Internem-me, se quiserem.

É por causa desta relação física com os livros que tantos de nós têm dificuldade em aceitar os livros electrónicos. Para mim, são um outro tipo de livros, talvez um pouco menos apetitosos. Mas compreendo que, para algumas pessoas, sejam uma cedência a qualquer coisa de artificial, muito longe desse objecto com cheiro e textura de que gostamos tanto.

Não fiquem com tanto medo: neste mundo há de tudo, desde os livros criados em máquinas a cheirar a óleo e tinta até textos impressos em tinta electrónica num leitor já com muito uso. Há lugar para todos.

4. Um dos nossos maiores pesadelos é estar numa bicha interminável e não ter um livro para ler…

Os livros são uma forma de aproveitar a vida. Exacto: quem lê gosta muito de viver, ao contrário do que dizem as más línguas, que julgam ver nestes calhamaços uma fuga à vida bem vivida. Antes pelo contrário: quem lê consegue viver até à espera da sua vez na segurança social.

É verdade, por vezes hesitamos entre ler e sair à noite (o que não quer dizer grande coisa): os prazeres duma boa noite com um livro na mão são muitos. Agora, o que preferimos sem qualquer hesitação é ter um livro na mão quando temos de estar parados nalgum sítio. Para quê perder tempo a olhar para uma parede, quando podemos estar a ler?

5. Temos medo de andar de avião porque não queremos perder a mala dos livros

Para começar, levamos sempre livros a mais. Nunca se sabe o que pode acontecer, e as nossas vontades de leitores são, por vezes, imprevisíveis. Sim, estamos no início deste calhamaço de 500 páginas, mas quem sabe se não o terminamos amanhã de manhã? Ou quem sabe se não nos apetece mudar de livro a meio da noite?

Ora, os livros lá vão enterrados numa das malas de porão. Mas há sempre um, ou dois, ou três livros que seguem bem perto de nós, apesar de todos os limites das companhias aéreas. Imaginam o que é aterrar num qualquer país paradisíaco e perceber que não há livrarias ou só podemos comprar livros numa língua que não compreendemos?

Para dizer a verdade, até um livro numa língua desconhecida guarda prazeres secretos para a nossa tribo. Já me aconteceu passar longos minutos a folhear um livro em sueco, à procura de certas palavras que me abrissem uma pequena janela para o que estava escrito ali — e só o passar os dedos pelas páginas já era razão suficiente para estar ali, assim, a olhar para as letras numa língua desconhecida.

Crónica adaptada de texto anterior, que republico agora para lembrar a Feira do Livro de Lisboa.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.

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