1. Alimentar os filhos com muitas palavras
Muitos andam preocupados com a língua portuguesa e o estado em que ela se encontra. Por mim, digo-lhes isto: pensem antes no futuro. Conversem com os vossos filhos sempre que puderem, contem histórias, expliquem o mundo, apontem para tudo o que é interessante — abram os olhos a essas crianças que hão-de ser os falantes de português das próximas décadas.
Em pouco tempo, os nossos filhos estarão a conversar com outras pessoas, a ler por si, a ir muito além do que lhes ensinam os pobres pais. Resultado: estas conversas passam a ser boas para os filhos, mas também para os pais.
Conversar: algo tão simples, mas que fará mais pela língua portuguesa do que todas as carpideiras da língua.
Ganham as crianças e ganhamos nós.
E o que é a língua senão os seus falantes?
2. Ouvir os outros com menos pedras na mão
Há muita gente que anda pelo mundo convencida que é a própria pérola que foi atirada aos porcos.
Desenganem-se: as probabilidades de cada um de nós ser um génio num mundo de estúpidos são diminutas.
Provavelmente, encontramos todos os dias imensa gente bem mais esperta e sábia do que nós, mesmo que não pareça e mesmo que essa gente não pense como achamos que deve pensar (não é crime, por enquanto).
Há gente parva e que não interessa a ninguém? Sim, claro. Mas concentrem-se nesses por vossa conta e risco. E, reparem, quem estiver convencido que sabe distinguir bem entre gente interessante e gente desinteressante arrisca-se a perder muita conversa inteligente, só por causa da superfície pouco polida. Raspem um pouco mais...
Mais vale dar o benefício da dúvida e procurar o que é bom, em vez de pôr tudo no mesmo estafado saco.
3. Conversar com gosto e proveito
Mesmo que se dê o improvável caso de um de nós ser um génio daqueles a sério, esse tal génio improvável só tem a ganhar em ouvir os outros de mente aberta.
Não tem de concordar com tudo. Mas também não precisa de andar todo o dia com o desprezo estampado na cara.
E não é que até há imensa gente com quem podemos conversar, desde um velho pescador a um professor curioso?
Por isso, conversemos com gosto e menos juízos apressados.
4. Apreciar as palavras, as frases, os textos...
Rolar as frases pela boca, ler Os Lusíadas alto e bom som, rir-se com Os Maias, mas também com as conversas brejeiras de alguns talentosos amigos, com as piadas bem achadas de muita gente, com as discussões quase em modo de desgarrada que há por aí.
Tentar encontrar o verdadeiro amor pela linguagem, pela língua, tanto aquela de casa, onde muitos dizem «o comer» (ai, malandros!) e falam com sotaque carregado lá da terra, como numa sessão de declamação de boa poesia num palco de Lisboa, também em carregado sotaque (lisboeta).
A língua vai muito para lá dos limites do nosso próprio cérebro. Está em todo o país e em todos os falantes e não merece a desatenção que lhe damos, obcecados por um apertado dialecto (a que chamamos português-padrão).
Peço ao leitor que não me interprete mal: essa norma-padrão é utilíssima e valiosa. É a base da escrita e serve de nossa língua comum quando estamos em situações formais — só que está longe de esgotar o nosso belo português.
Os mais corajosos até podem avançar confiantes para lá das fronteiras: que tal ler um pouco de galego, esse irmão esquecido, ou mergulhar no saboroso português brasileiro, cujas diferenças fazem saborosas cócegas? Podemos, assim, esquecer por momentos os tribalismos que tanto nos limitam. Em suma: descubramos a nossa língua onde menos se espera.
5. Refrear o revisor que há em nós
Ora, sim, isso mesmo: muitas pessoas gostam de andar pelo mundo com uma caneta vermelha nos dedos. É muito mau? Quanto a mim, é. Primeiro, porque, quase sempre fazem-no mal informados, atacando tantas e antigas expressões portuguesas — e atacam-nas no papel e na boca dos outros, às vezes com laivos de má educação. (Alguns até se orgulham de corrigir a gramática dos outros em silêncio.)
Sim, claro, a tal caneta vermelha, usada com rigor e sem maldade, é bem útil quando estamos a ensinar, quando estamos a ajudar um filho a escrever um texto, quando trabalhamos como revisores — e quando revemos os nossos próprios textos, acima de tudo.
Mas, no dia-a-dia, andar com uma gramática na mão como o missionário anda com a Bíblia faz tanto sentido como criticar a técnica do amante enquanto fazemos amor. Até podemos ter razão, mas estraga o momento, digo-vos já. (E, sim, isto foi uma mistura de metáforas a dar para o blasfemo, mas espero que não se importem; se se importarem, risquem à vontade.)
Talvez essa caneta esteja colada na mão de muitos exactamente porque se vêem como génios num mundo de estúpidos. Outros, estão genuinamente preocupados com a pobre língua.
Ora, nada posso fazer contra isso, mas não deixo de aconselhar: é tão bom conversar sem pedras na mão; ler sem alarmes na cabeça; falar sem medo e com gosto.
Vá, admito, uma vez por outra, também é giro mandar uma pedrita ao lago — principalmente quando a pedrita é atirada, devagar para não aleijar, àqueles que gostam de atirar pedregulhos com força.
Mas deixemo-nos de obsessões que só nos estragam os dias, pode ser?
6. Escrever sem parar - e acordar, então, o tal revisor
A tal caneta vermelha que pedi para guardar no bolso ali mais acima convém agora tirá-la e usar sem pejo. É preciso escrever, reler, reescrever. Riscar e atirar fora. Tentar de novo.
Só à força de muito treino se consegue escrever um pouco melhor.
Por isso, tudo o que nos leva a ficar mais inseguros na escrita e na fala deve ser ignorado. Para aprender a escrever, só há um caminho: ler muito, cada vez mais, e depois escrever e voltar a escrever. É difícil? Sim.
7. Não falar da língua com a boca cheia de ideias feitas
Só dois exemplos de ideias feitas sobre a língua: há quem jure que os jovens não sabem falar (e já não sabem falar há séculos, coitados). Outros apostam que o nosso vocabulário está a desaparecer como água pelo ralo.
Ainda há tempos ouvi quem dissesse que já só usamos 800 palavras! Também há quem aposte nas 100 palavras! E sempre com ponto de exclamação.
Amigos: tenham tino, se faz favor.
É verdade: não somos Shakespeares ou Camilos — mas usamos muitos e bons milhares de palavras.
Usamos mais umas palavras do que outras? Ora, claro. Mal seria se assim não fosse. As palavras simples e directas são simples e directas precisamente porque são mais frequentes (e úteis, digo eu)…
Nisto do vocabulário, deixemo-nos de tremendismos. Ou, pelo menos, quem não conseguir evitar, que apresente provas, com números, comparações e evoluções. As vagas impressões valem muito pouco.
8. Ler sem parar
Toca a ler — e muito. Assim, conseguimos treinar a língua, ao vê-la naquela escrita que só os grandes conseguem. Podemos ler os velhos clássicos, que são bem mais saborosos do que nos dizem por aí. Voltemos à Cidade e as Serras. Ou à Queda dum Anjo. Se não quisermos ir tão atrás, temos, por exemplo, O Delfim ou Balada da Praia dos Cães — são exemplos muito pessoais, estes...
Depois, podemos seguir pela História, pela Filosofia, pela Ciência. Pelas revistas e jornais. Pelos blogues.
Toca a ler, se faz favor.
9. Morder a língua
Ora, para quem acabou de afirmar que é preciso ler e escrever sem parar, vir agora dizer que também convém saber quando parar parece uma contradição daquelas bem feias.
Mas não é: falamos, escrevemos, lemos e ouvimos — e às vezes temos de hesitar; morder a língua; contar até 10; deixar o insulto no cérebro. Pensar mais um pouco. Tentar perceber se não estaremos errados (porque às vezes estamos mesmo errados).
É isto compatível com o escrever muito e falar ainda mais? Nem sempre, presumo. Mas temos de encontrar esse equilíbrio.
Não podemos pensar eternamente em tudo o que dizemos, sob pena de ficar calados. Mas também não temos de atirar ao mundo a primeira opinião que nos vem à cabeça, só porque é nossa e soa bem.
Em caso de dúvida, pense-se uma ou duas vezes. Três, vá. Depois, diga-se o que se tem a dizer. Oiça-se o mundo e, se preciso for, mudemos de ideias.
Agora, quando o insulto e o desaforo indignado vem à boca, aí sim está na hora de morder a língua. Até porque os insultos e as indignações são bem preciosas em certas ocasiões. Estar a gastá-los só porque sim é tirar-lhes o valor e o peso.
10. Aprender outras línguas
Pronto, este último conselho talvez não faça muito sentido: para quê aprender outras línguas quando queremos usar melhor o português?
Não sei. Mas sei que a linguagem humana é mais do que a nossa língua e saber falar outras línguas humanas é mais do que útil: é um excelente treino para ginasticar o nosso cérebro — e sempre nos dá ainda mais oportunidades para falar, ouvir, escrever e ler.
E é isso que se quer, ou não?
Usar a língua (a nossa ou outra) entre gente real: falar com os filhos, conversar com os amigos, ler os grandes escritores...
Usar a língua cada vez mais e, assim, cada vez melhor.
O texto acima já foi publicado no livro Doze Segredos da Língua Portuguesa.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.
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