Toda a gente diz que nesta República nunca houve uma política de habitação duradoura, nem nacional nem municipal. A única excepção foi o PER, o Plano Especial de Realojamento, executado há 30 anos, que erradicou as barracas em 28 municípios, especialmente Lisboa e Porto. Contudo, o PER, excelente que foi, não pode ser considerado um programa abrangente, uma vez que ficaram de fora os habitantes dos bairros históricos, que muitas vezes vivem em condições iguais ou piores do que nos bairros da lata; e evidentemente, nem esse programa nem nenhuma outra legislação resolveu o problemas das classes médias de menor renda, que cada vez têm mais dificuldade em ter uma habitação decente.

A presente tentativa do Governo foi dar algum alívio a esses estratos, que, não sendo “os mais desfavorecidos” (um eufemismo irritante), são também desfavorecidos, pois pagam pela habitação, alugada ou comprada, muito mais do que os proverbiais 33% do seu rendimento. Ao que parece, pois ainda está para se ver, o programa não vai funcionar; já se instalou uma disputa entre as câmaras e o poder central sobre de quem são as responsabilidades e a primeira medida, um subsídio às rendas e empréstimos, mais uma uma vez deixa de fora a classe que não é oficialmente pobre.

Adiantando o que vou tentar provar a seguir: o problema é que a política do Estado é subsidiar as pessoas, quando deveria ser subsidiar a construção - não, não estou a falar em dar dinheiro aos construtores civis e proprietários, mas em tornar a construção mais barata., através de zoneamento (terrenos mais baratos) e juros baixos para a construção. Já lá iremos.

O problema da habitação nos grandes centros urbanos não é só português, evidentemente, e outros países ditos mais “civilizados” também não o resolveram, considerando aqui não só o custo de habitar, mas também o mix social. Criar bairros gigantescos para os mais pobres, como se fez em Paris, resultou numa “guetização”. E Londres ou Nova Iorque, cidades que tanto admiramos, nunca conseguiram integrar as classes sociais com os seus programas, e hoje são proibitivamente caras. Isto para não falar de desgraças colossais, como Jacarta ou Lagos, onde os pobres se apinham em barracas insalubres separadas por muros das zonas de habitação luxuosa.

Atualmente constrói-se mais em Tóquio do que no total das zonas urbanas do Reino Unido, e os preços estabilizaram um pouco.

Tóquio tentou em 2002, aliviar as regras de zoneamentos urbano (mais zonas, mais baratas), o que aliviou um pouco a situação. Atualmente constrói-se mais em Tóquio do que no total das zonas urbanas do Reino Unido, e os preços estabilizaram um pouco.

Auckland, a capital da Nova Zelândia, uma das mais caras do mundo, em 2016, modificou 75% do seu zoneamento, aumentando a capacidade habitacional em 300%. O número de habitações mais em conta quadriplicou entre 2016 e 2021, o que baixou os preços de mercado. Contudo, o sistema não impediu os grande investidores imobiliários de sobrevalorizar o valor dos fogos, nem oferece segurança aos inquilinos, nem criou habitação social. (Estes números, e todos os outros aqui citados, foram retirados dum artigo do “The New York Times” sobre a selvajaria que é o imobiliário em Nova Iorque e nos Estados Unidos em geral.)

E aqui chegamos a Viena de Áustria, uma cidade magnífica, com uma qualidade de vida altíssima, onde seria de esperar que a habitação fosse incomportável. Nada disso. Viena oferece uma abundância de apartamentos a preços muito baixos, acessíveis a todas as pessoas que lá morem, austríacos ou estrangeiros. Parece impossível, mas até um não especialista como eu consegue perceber como funciona. Porque é que os nossos especialistas do Estado, que deveriam estudar mais antes de legislar, não se debruçaram sobre este caso, é surpreendente. Ou não...

Antes da I Guerra Mundial, a Viena do Império Austro-Húngaro tinha condições de habitabilidade péssimas, como todas as capitais europeias. Com a derrota da Áustria no conflito, caiu a dinastia dos Habsburgos e instaurou-se uma república. O primeiro governo nacional, eleito em 1919, era uma coligação de liberais e sociais-democratas. O município de Viena ficou na mão dos sociais-democratas. Começa então um período conhecido como “Viena vermelha” (1923-34) e a cidade arrancou com um programa de habitação municipal, o Gemeindebauten.

Uma pausa na história de Viena para esclarecer as etiquetas: historicamente, a social-democracia é uma forma de marxismo não revolucionário, o caminho para o socialismo de uma forma democrática, “revisionista” do ponto de vista dos bolchevistas. Os sociais-democratas eram os principais adversários dos comunistas no campo da esquerda. Com o tempo, o conceito foi “empurrado” para a direita, sobretudo pela propaganda comunista, mas em certos países continua a ser de esquerda - vide os nórdicos, por exemplo. Em Portugal o PPD/PSD quis entrar para a Internacional Socialista e foi recusado porque já lá estava o PS. Depois é que se tornou centro-direita.
Quanto ao termo “liberal”, tem várias conotações. Politicamente, significa o contrário de conservador, portanto é de esquerda. Economicamente, defende a menor interferência do Estado, portanto é de direita. Na Europa os partidos liberais são considerados como centro, nos Estados Unidos, os Democratas é que são liberais, portanto à esquerda dos Republicanos conservadores. Do ponto de vista europeu, os Democratas americanos são centro.

Voltando a Viena:inicialmente foram construídos 64 mil fogos em 400 conjuntos habitacionais, que realojaram cerca de 200 mil pessoas, cerca de 10% dos habitantes. As rendas eram de 3,5% do rendimento das famílias menos abonadas, o que cobria a manutenção. Mas podiam habilitar-se pessoas da classe média. Tal como aconteceu com o nosso PER, este surto habitacional permitiu aos arquitectos fazer várias experiências, algumas com ótimos resultados. Pode encontrar imagens aqui ou então comprar o livro “The Architecture of Red Vienna”, 1919-1934” de Eva Blau.

O mais interessante é que o programa continua até hoje, embora Áustria tenha passado por todas as cores políticas, a começar pela anexação à Alemanha nazi em 1938. Atualmente, a construção social é mais limitada, mas a procura é menor também - todos os anos há 12 mil candidatos e 10 mil são aceites. E o Gemeindebauten é acompanhado por um forte movimento cooperativo. Juntando o programa com as cooperativas, 42% do parque habitacional da cidade está fora do mercado comercial livre.

Outro aspeto a destacar é que as pessoas nunca têm de sair das casas “sociais”, nem têm as rendas aumentadas (a não ser que a inflação seja superior a 5%), mesmo que os seus rendimentos cresçam desproporcionalmente à renda. Na prática esta norma leva a uma grande integração social, com famílias de rendimentos muito diferentes a viver nos mesmos edifícios. E os arrendatários pagam apenas 1% do seu rendimento!

Claro que que 80% dos residentes de Viena preferem arrendar a comprar a casa onde vivem.

Surpreendentemente, a cidade tem uma percentagem maior de habitantes estrangeiros do que Nova Iorque, e cerca de metade reside em casas do programa Gemeindebauten.

Quanto às cooperativas, só podem cobrar rendas que reflictam os custos de manutenção. Investidores - sejam bancos ou fundos institucionais - podem comprar cotas nas cooperativas, sobretudo para financiar a construção. Recebem um retorno baixo pelo investimento e receitas acima desse valor são reinvestidas em novas casas sociais.

Parece tudo uma questão de bom senso, não é?