7. To out-Herod (ou os inventores de palavras)

No final do segundo capítulo desta história, o inglês era ainda uma obscura língua de uma ilha no Norte da Europa.

Entre os séculos XVI e XVII, viveu aquele que viria a simbolizar a língua no seu esplendor literário: Shakespeare.

Shakespeare é, no fundo, o Camões lá do sítio — só que escrevia teatro e não era dado a epopeias.

O bardo moldou o material linguístico que lhe foi oferecido por esses séculos de celtas, romanos, bárbaros e víquingues — e usou-o sem medo e com muito talento. Lá pelo meio, inventou palavras e expressões que ainda hoje são usadas pelos falantes de inglês (algumas até acabaram noutras línguas, incluindo o português — será tema de um artigo futuro).

Uma expressão que inventou e que tem muita graça aos meus ouvidos latinos é «it out-Herods Herod», que aparece em Hamlet. Para quem tem medo das palavras que saltam de categoria, deve ser um horror — para mim, é uma delícia. Um nome próprio é transformado, à força, num verbo. «Out-herods Herod» significa algo como «é mais Herodes que o Herodes» — algo como «é mais papista que o Papa»...

Hamlet: ser ou não ser. Uma caveira na mão. Algo está podre no reino da Dinamarca. Tantos séculos depois de Beowulf, os ingleses ainda sonhavam com as velhas terras de onde tinham vindo…

8. Fetish (ou a língua para lá do oceano)

Na época de Shakespeare e Camões, portugueses e ingleses andavam aos tropeções pelo mundo — como seria de esperar, o inglês absorveu algumas palavras portuguesas. Uma delas é fetish, que andou para trás e para a frente pela Europa fora, como contei neste outro artigo.

Não foi só ao português que o inglês foi buscar palavras. É um idioma que parece um aspirador de palavras… Aspira palavras porque os ingleses andavam a aspirar o mundo. Chegam à América, dão um pontapé aos holandeses ali em Nova Iorque e dão uma nova vida ao seu idioma. Só isto dava para mais uns quantos capítulos.

Para já, avançamos, não sem antes notar um fenómeno curioso: no território imenso de língua inglesa na América do Norte, a variedade dialectal é menor do que no pequeno território britânico deste lado do mar.

Por que razão acontece isso?

Quando a língua se transplanta para um novo território, vai na boca de um número relativamente reduzido de falantes, em que a variedade é menor do que no conjunto total dos falantes que ficam no território original. Ora, essa uniformidade de partida dilui-se ao longo dos séculos, mas devagar — e, por isso, ainda hoje temos menos variedade dialectal no inglês dos EUA que no do Reino Unido.

Basta ouvir um escocês ou um inglês de Manchester para percebermos isso mesmo — para ouvirmos sotaques tão diferentes nos EUA teríamos de andar bastante mais quilómetros (aliás, milhas).

A variedade dialectal nos EUA existe: só que se nota em distâncias bem maiores que no Reino Unido. Como, entretanto, chegámos à época da escolarização de toda a população, esta maior uniformidade ainda hoje se nota e vai, talvez, manter-se por muito tempo.

Isto não significa que os EUA sejam um país linguisticamente aborrecido. Afinal, Nova Iorque é provavelmente o território onde se concentram mais línguas no mundo…

Sobre o inglês de lá e de cá, aconselho um belíssimo livro: The Prodigal Tongue, de Lynne Murphy. Ficará a saber, entre muitas outras coisas, que a palavra «soccer» não é um americanismo.

9. OK (ou o século do inglês)

O Reino Unido foi uma das grandes potências do século XIX. Os EUA foram uma das superpotências do século XX. Os dois países estavam do lado dos vencedores nas duas guerras mundiais. Enfim, por estas e outras razões, o inglês acabou por se tornar uma língua com uma força internacional que, hoje, parece inabalável.

Mas não nos esqueçamos que, ainda há uns séculos, a língua inglesa era um falar do povo, enquanto os nobres conversavam em francês. Hoje, é uma língua aprendida por quase todos os jovens europeus, como segunda língua. Sim, até os jovens que vivem nos territórios de onde saíram os Anglos & Companhia — ali na zona da Dinamarca, Alemanha, Países Baixos — aprendem a língua desses velhos bárbaros…

Esta é também a língua que mais se insinua nas outras, pela força cultural e económica (talvez mais esta do que aquela) dos países que a usam. Por outro lado, como vimos, também absorve vocábulos de todas as línguas sem grande pudor. Um bom livro sobre estas dinâmicas é Empires of the Word, por Nicholas Ostler.

O que acontecerá daqui a 500 anos? Não sabemos. Talvez o inglês já seja uma velha língua esquecida — ou não.

Esta secção tem «OK» no título. A razão é simples: esta é uma das palavras que mais se ouvem por esse mundo fora, representando a força desta língua. É uma palavra com uma história engraçada — que fica para outro dia.

10. Brexit (e os prazeres de uma língua impura)

«Brexit» — a palavra, não o próprio — é uma palavra criada pela justaposição de outras duas: «British» e «exit». Os seres humanos são assim: criam palavras, misturam-nas, moldam-nas, destroem-nas ao criar outras — tudo isto sem pedir perdão a ninguém.

Os ingleses sempre estiveram mergulhados nas guerras e confusões da Europa, como bem atestam os estratos que encontramos ao escavar a sua língua — mas, como habitantes duma ilha a umas quantas léguas da costa, gostam de se imaginar um pouco menos europeus do que os outros.

E, no entanto, o inglês é uma língua europeia como poucas. Mesmo na União Europeia, continua a ser uma das muitas línguas oficiais e continua a ser muito usada na prática, embora seja agora a língua materna de menos cidadãos europeus do que o português (ou, se não me enganei nas contas, que o catalão!).

No fundo, o uso que fazemos do inglês já está desligado do inglês enquanto língua daquele país em particular. Quando um alemão conversa com um português, fá-lo — muitas vezes — em inglês. Quando um checo conversa com um grego, o inglês também lá estará. Até já é relativamente comum encontrar portugueses e espanhóis a conversar em inglês.

Escrevi esta pequena história só para que víssemos como o inglês é uma língua interessante, impura como poucas, com uma história bastante peculiar, cheia de palavras de todas as línguas.

Essa história vê-se, por exemplo, na proximidade que tem ao frísio, uma língua falada nos Países Baixos, numa das regiões de onde partiram aqueles bárbaros germânicos para convencer os celtas britânicos a mudar de língua…

A história do inglês também nos aparece na persistência das línguas celtas em certas zonas da Grã-Bretanha, línguas que parecem ter moldado, subtilmente, a gramática do inglês.

Depois, temos o inglês tão diferente de região para região — o próprio inglês antigo nunca foi uma língua uniforme, dividido como estava entre muitos reinos, cada um com vários sabores do idioma.

É ainda uma língua que ganhou outros sabores por esse mundo fora, da América à Austrália, passando pela Índia e por muitos outros territórios onde os falantes chegaram, às vezes de forma um pouco (digamos assim) brusca.

O certo é que uma velha língua de umas tribos ali nas costas do Mar do Norte é hoje ouvida em todo o mundo.

A sorte e o azar dos idiomas têm muito pouco que ver com as suas características intrínsecas ou a sua pureza, qualidade que pouco adianta numa língua. A sorte da língua é consequência do que acontece aos povos que a falam, das suas viagens, guerras, conquistas e derrotas. Também por isto as línguas humanas são um tema tão interessante.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas PalavrasO seu livro mais recente é Português de A a Z.

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