Na mesma semana, o partido socialista espanhol viveu um dos momentos mais conturbados da sua história recente, os colombianos festejaram primeiro e derrotaram depois em referendo o acordo de paz com os guerrilheiros das FARC e António Guterres foi escolhido para secretário-geral das Nações Unidas.
Nada a ver? Depende da perspectiva. Comecemos por Espanha. Pedro Sánchez, líder do PSOE até ao passado sábado, não conseguiu ou não soube gerir um partido sob tensão extrema, depois de seis derrotas eleitorais e espremido nos extremos por um Podemos que, por sua vez, limpou do mapa uma Esquerda Unida e focou-se em triturar tanto PP como PSOE, e não forçosamente por esta ordem. O ex-líder socialista, por sua vez, assumiu como bandeira a total oposição a qualquer tipo de acordo com o PP ou, em rigor, com o PP de Mariano Rajoy. Quem tenha estado minimamente atento ao que se tem passado em Espanha e à síncope moral do PP (não só de Rajoy, mas também de Rajoy) compreenderá a determinação de Sánchez. Certamente existirão outras razões – em política, existem sempre – mas pactuar com o partido que mais se tem combatido é uma espécie de traição aos nossos que é difícil de aceitar.
Só que enquanto isso, Espanha vai seguindo sem Governo e apesar de gostarmos da piada fácil de que assim é que se está bem, a verdade é que não se está. Estão demasiadas coisas a acontecer em Espanha para que o país – enquanto país – se possa dar ao luxo de não ter um governo, e de preferência um Governo com uma boa base de apoio, coeso e que tome decisões.
A politóloga Marina Costa Lobo contava, na semana passada, na sua timeline de Facebook, que em Espanha lhe tinham feito a seguinte pergunta: se nas eleições legislativas de 2015 o BE tivesse tido apenas menos 1% de votos que o PS, António Costa teria feito uma coligação com esse partido na mesma?
É uma pergunta que aqui partilho e a que mais à frente voltarei para falar dos interesses, particulares e gerais, e de onde é mais importante a luta ou o consenso.
Mudando de continente, no domingo à noite fomos surpreendidos com a notícia de que na Colômbia o referendo ao acordo de paz com as FARC tinha sido chumbado por cerca de 50 mil votos de diferença entre o 'sim' e o 'não'. Numa votação em que mais de 60% dos colombianos simplesmente nem foram, (a abstenção foi de 62%), os 40% remanescentes dividiram-se em partes quase iguais, mas com ligeira vantagem para aqueles que recusaram o acordo. Quatro anos de negociações, depois de 52 anos de conflito que deixou mais de 260 mil mortos, 45 mil desaparecidos e 6,9 milhões de deslocados. Feridas difíceis de ultrapassar em paz, mas potencialmente letais se a alternativa fosse a continuação da guerra. Como sublinhou Juan Manuel Santos, tratava-se de optar por "um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que continue a semear morte e dor no nosso país, nas nossas famílias".
Por seu lado, o líder das FARC, Rodrigo Londoño "Timochenko” pediu desculpa pelas vítimas do conflito na Colômbia: "em nome das FARC-EP, peço sinceramente perdão a todas as vítimas do conflito por toda a dor que causámos nesta guerra".
A ex-refém da guerrilha das FARC, Ingrid Betancourt, que era a candidata do partido ecologista colombiano quando foi sequestrada, em 2002, tendo ficado refém por seis anos das FARC, não conseguiu assistir à cerimónia de assinatura do acordo. Emoções contraditórias de quem sentiu na pele os efeitos dessa guerra de 52 anos. E por isso alguém com autoridade para dizer que este acordo representava “um momento extraordinário". “Sinto um alívio muito grande, como o final de um pesadelo. Felizmente terminou!",
Nada disto chegou. O 'não' ao acordo, defendido sobretudo pelo ex-presidente Álvaro Uribe, internacionalmente isolado nessa sua campanha, ganhou. Ganhou por pouco, mas ganhou.
E eis que, a meio da semana, soubemos que António Guterres seria – depois de uma verdadeira novela internacional – o futuro secretário-geral da ONU, um lugar que tem potencialmente tanto de decisivo como de frustrante.
Guterres chega a este lugar por mérito próprio e, curiosamente, suportado em qualidades que não fizeram dele um bom primeiro-ministro. Usando as palavras da Ana Sá Lopes que já o escreveu antes de mim no Jornal i, “há duas características pessoais de Guterres que liquidaram o seu sucesso político interno, mas foram decisivas nos últimos quatro anos e serão fundamentais no cargo de secretário-geral das Nações Unidas: gostar de dialogar até à exaustão, procurar consensos até ao fim”.
Foi a mesma capacidade - de dialogar e de privilegiar o que nos une em detrimento do que nos divide - que o Comité do Nobel decidiu premiar ao entregar hoje o Prémio Nobel da Paz a Juan Manuel Santos, o grande derrotado do referendo de Domingo na Colômbia, mas o grande vencedor de quem acredita que não há tarefa mais árdua, e ao mesmo tempo mais meritória, do que a de quem prescinde de ter toda a razão. Prescindir de ter toda a razão talvez tivesse “salvo” Pedro Sánchez em Espanha – embora entre aquele Podemos e aquele PP a razão seja uma terra estranha. Ou simplesmente, tal como acontece com qualquer um de nós, as pessoas certas para um determinado lugar poderão ser, provavelmente, as mais erradas para outro. É totalmente inglório colocar um peixe a subir a uma árvore – pior ainda quando se decide, mediante a incapacidade do bicho, colocá-lo no topo de certas árvores.
Guterres não foi um bom primeiro-ministro, mesmo tendo governado Portugal em anos de ouro. E muitos dos portugueses que rapidamente se empoleiraram às suas cavalitas, foram os primeiros a esquecê-lo. Vamos dizer que é cultural – todos queremos engrandecer com quem engrandece Portugal, e se retirarmos um certo ridículo que nada tem a ver com genuíno orgulho por um de nós se ter distinguido, não se passa nada de grave. Mas, o que o impediu de ser um político memorável na política interna pode fazer dele o líder certo no trabalho mais impossível do mundo.
Ontem, fui recordada dos alicerces da economia segundo Adam Smith: racionalidade e equilíbrio. Sendo que a racionalidade assume que cada um de nós escolhe por si e de acordo com o seu contexto e o equilíbrio resulta (ou não) do conjunto dessas escolhas individuais.
Se olharmos o mundo por esta lente, somos capazes de concordar que, com 7 mil milhões de habitantes no planeta Terra, as coisas até correm bem melhor do que seria expectável. E provavelmente parte disso é capaz de ter a ver com pessoas como Guterres e Juan Manuel Santos – líderes imperfeitos, Trump talvez dissesse sem “stamina”, mas pessoas dotadas de uma generosidade e dessa capacidade de diálogo (e de cedência) que demasiadas vezes parece fora de moda.
Tenham um bom fim de semana!
Outras sugestões:
E já que falamos de como é difícil governar um país ou vários países, hoje decorre um evento que promete fazer pensar sobre o que significa viver em democracia. É a conferência “Que democracia?” organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que decorre em Lisboa, no Chiado, e que fecha com uma pergunta a que Mario Vargas Llosa vem responder: No futuro a democracia pára ou arranca?
Há revoluções em toda a parte – esta é silenciosa e pode desempenhar um papel importante já nestas eleições americanas. A ler na The Atlantic, como o envelhecimento está a mudar a América.
E para nos deixar a pensar, aqui fica este artigo da revista Wired sobre aquela hipótese de o tempo só existir – mesmo – nas nossas cabeças.
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