1. Muitas pessoas escreveram sobre Belmiro de Azevedo desde quarta-feira à tarde, quando a sua morte foi noticiada. Entre a maior cadeia de hipermercados em Portugal e a empresa fundadora do “Público”, ele teve impacto na vida de tanta gente que outra coisa não seria de esperar. Difícil dar conta da catadupa de textos, ainda que tentasse. Não tentei, de facto.
Na quarta, eu estava a caminho de uma homenagem em Lisboa quando quem ia ao volante disse casualmente, no meio de dois assuntos, morreu o Belmiro de Azevedo. Hoje, de volta à serra onde moro, sentei-me ao computador sabendo que não seria capaz de escrever sobre Belmiro. Ainda dei uma vista de olhos a alguns obituários, mas quando abri o site do “Público”, jornal no qual escrevi 20 anos, não consegui ler mais do que um texto. Só ver o site já é doloroso.
Passou muito pouco tempo sobre tanto tempo, e estou cada vez mais lenta.
2. Como aprendiz de jornalista, calhou-me começar pelo meio mais veloz que existia, a rádio. O meu treino foi a reportagem em directo, a reacção na hora, a antena aberta, rabiscar ao minuto ou falar de improviso. Estive um ano nos primórdios do “Público” como colaboradora diária, mas a década que trabalhei em rádio foi a matriz de um ritmo. De tal modo que, quando voltei ao jornal, dessa feita por 19 anos, tive de me forçar a escrever frases com mais de uma linha, parágrafos com mais de duas frases. Textos tantas vezes arrancados a ferros, emendados até à última, nunca o bastante. Na rádio, o texto transforma-se em voz. Escrever para ser lido pesa muito mais. E para mim nunca voltou a ficar leve, ao contrário, sempre incluindo emendas até à última, nunca as bastantes.
3. Há quem ande de avião, fale em público ou escreva sem nervos. Há quem perca os nervos com a experiência. E há quem os ganhe, pelo menos eu. Tudo isso, de certa forma, tem a ver com velocidade. Não acelerei com a experiência, foi o inverso. Da rádio em directo passei para um diário, onde mais tarde trabalhei em suplementos semanais, antes de começar a escrever livros. Os meus meios foram-se tornando menos velozes, literalmente e não só. Ou o tempo nunca pareceu correr assim, deixando de fora tanto por pensar, em todas as direcções.
4. Pensar é uma grande selva. Não sei de onde vem a expressão macaquinhos no sótão. Não pululam macaquinhos em Portugal, só mesmo os de sótão. Na selva carioca em que morei, sim, havia muito chinfrim de macaquinhos. Os de sótão também fazem grande chinfrim, pulam de um lado para o outro, jamais ficam quietos. Só distinguir cada som na cabeça, começar mesmo a ouvir, demora imenso.
Mentira dos relógios que o tempo dura sempre o mesmo. Claro que não dura porque há minutos que são horas, anos que nem sabemos para onde vão. E, de relógio em relógio, o tempo também não dura o mesmo para cada pessoa. Nem é sempre presente no presente. Há coisas que só se ouvem, vêem noutros séculos.
Escrevi vários obituários a quente, nos minutos ou horas depois do anúncio da morte. Se nunca foi fácil, hoje parece uma vida remota, tão difícil seria.
5. Nunca conheci Belmiro mas a sua figura é inseparável do “Público”, e eu deixei de escrever no jornal este ano, luto recente. Portanto, quando hoje me sentei tinha a certeza de que não seria capaz de escrever sobre a morte dele. Nesse momento, ligou um amigo, ex-camarada de jornal, com quem partilhei essa incapacidade. Ele sugeriu-me que a explicasse numa nota à crónica, já que ignorar totalmente Belmiro podia ser uma espécie de declaração.
Fiquei a pensar nisso. Impossível ser só uma nota. Eu não a conseguiria compatibilizar com um assunto acima. Se algum dia escreverei sobre Belmiro de Azevedo numa crónica, esse dia não é hoje. Mas hoje também acabei por não escrever sobre outro assunto.
6. Quando soube da morte de Belmiro, eu ia para uma homenagem no Museu de Etnologia a Victor Bandeira, grande viajante e colector. Aos 86 anos, ele continua em busca de ar livre para acender a sua boquilha de haxixe com tabaco. Após a sessão, alguns dos amigos especularam sobre a relação do fumo com a juventude do homenageado. Victor conheceu mundos com e sem dinheiro, viu a beleza, o horror, comprou, vendeu para viajar mais, não ficou rico. Fala de Cuba como Fidel não gostaria, das Bijagós como já não é possível, ou das aventuras de uma botija de gás em Srinagar. Mas frequentemente responde apenas “não sei”. E que libertador ouvir alguém dizer “não sei” a uma plateia. A liberdade de falar completa-se com a liberdade de não falar, talvez a mais rara hoje, em democracia.
Moral da história? Nenhuma, apenas um enxerto casual no luto e na morte: quarta-feira, para mim, acabou com um brinde à grande arte de ser livre.
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