A tensão sente-se no ar. Uma espécie de electricidade estática que antecipa a trovoada emocional que se vislumbra já em nosso redor. Aos poucos, num processo lento e arrastado, fomos nos tornando intolerantes às relações sociais. Quando acordámos duma letargia que nos embalava percebemos que o estado de irritação constante é agora parte de nós. E tal sente-se nas mais pequenas coisas. Na forma como deixámos de cumprimentar a vizinhança e aqueles com que nos cruzamos no quotidiano; no facto de paulatinamente deixarmos de falar, enquanto troca de ideias e experiências, e apenas trocarmos mensagens (ou áudios); na constatação de termos deixado de escutar, com a desculpa de nunca termos tempo; na impreparação de estabelecer um diálogo cordato e empático quando efectuamos uma mera troca comercial.

Parece que no meio deste caminho de contínua evolução perdemos a noção de como nos relacionar, quer com os mais próximos, quer com a generalidade das pessoas. É tudo mais real, mais imediato, mais moderno, mas ao mesmo tempo mais distante, mais fingido, mais superficial… Estamos constantemente conectados. E isso dá-nos a sensação de conseguirmos estar em todo o lado, ao mesmo tempo e com a qualidade 4K. Eu disse 4k? Perdão: 8K. O 4K já é tão anteontem.

Na palma da nossa mão cabe agora o mundo inteiro. Ou aquilo a que julgamos o mundo se resume. E encerra também a nossa profunda ignorância. Estupidificamos a olhar para um pequeno ecrã que replica a mesma coisa em plataformas díspares. Não temos análise crítica, não buscamos contraditório, nem quem nos conteste. Apenas procuramos aceitação. Um exército de influenciadores digitais (quais filósofos do supérfluo) apressam-se a dar-nos confirmação. Importaram dos livros de auto-ajuda o conceito de “a minha [tua] verdade”, que serve assim para corroborar a ideia ou conceito mais idiota que possamos ter. Repetem até à náusea a sua última indignação, que é agora também a nossa. Todas pejadas de um profundo preconceito para com o próximo. Principalmente se o próximo for forasteiro, for diferente, idolatrar outros deuses, falar outra língua, ter outros costumes.  

Ao mesmo tempo, um bando de políticos marginais decidiram que era tempo de ter uma conversa de vão de escada no espaço público. Dizem que desta forma dão voz aos reais anseios do povo. Porque na realidade todos temos medos e angústias. Condição indispensável ao ser humano. A exploração desses medos rapidamente se corporiza em ódios e preconceitos e na necessidade de encontrar culpados pelas privações e temores de que padecemos. Os populistas são necrófagos políticos, especialistas em tirar partido das piores situações. Oportunistas na busca incessante do próximo assunto putrefacto que se possa tornar soundbite, peça vital do discurso simplificador e imediatista que retira ao receptor o trabalho de pensar por si mesmo.

Na realidade tudo isto agora se resume à história do ovo e da galinha. Quem terá nascido primeiro. Não conseguimos perceber com exactidão como chegámos a este estado de indignação constante. Não percebemos se é a sociedade que contagia o discurso político ou se é aquela oratória que está a contagiar toda a sociedade. Na realidade, não é isso o mais importante. O que temos de lembrar é que sociedades transactas já estiveram no ponto que estamos hoje. E nessas épocas, a intolerância social consubstanciou-se como um ponto de não retorno. Queremos enveredar pela mesma via que nos conduziu à miséria económica, social, humana ou queremos arrepiar caminho e educar-nos para a diferença, sendo todos mais tolerantes para com o próximo?