Eram esses anos longínquos em que a ameaça nuclear alarmava o mundo, em que russos e americanos se altercavam, em que uma mulher do Partido Conservador era primeira-ministra do Reino Unido, em que o sarampo se afigurava uma epidemia assustadora.

A História repete-se porque os erros são ciclos viciosos e viciantes, porque as virtudes são invariáveis na escassez e, sobretudo, porque somos dotados desta tendência de procurar parecenças, seja em caras ou factos. Se, por um lado, queremos conhecer a História para impedir erros do passado, por outro só temos resoluções fidedignas para erros que se repetem; o medo do desconhecido é maior que o medo do conhecido. Andamos num equilíbrio macabro: desejamos erradicar as coisas que nos fizeram mal e, ao mesmo tempo, cultivá-las em doses pequenas que nos mantenham alerta e activos. O domínio da História nada é mais, afinal, do que um cauteloso plano de vacinação.

Apesar dos piscares de olho que hoje aqui deixei a temas da ordem do dia — seja a tensão termonuclear com a Coreia do Norte, os maus fígados entre americanos e russos na questão síria, as eleições antecipados do Reino Unido ou, mais vincadamente, a temática das vacinas -  na verdade o que tinha pretendido abordar era a questão turca, em especial o referendo que reforçou perigosamente os poderes de Erdogan. Acontece que, num mesmo espaço de opinião do SAPO 24, deparei-me há pouco com a crónica do José Couto Nogueira que faz exactamente (embora muito melhor) o que eu advogaria: uma resenha histórica intensiva que nos leve a procurar parecenças, mesmo que esbarremos em sombras irreconhecíveis.

Por não querer sobrepor-me à síntese já feita, apenas gostava de clarificar porque é que numa semana em que o mundo está tão descarrilado e incerto eu me volto para a Turquia. Para já, há um motivo aparentemente superficial que se prende com a vilania de Erdogan, e o quão difícil é destrinçar-lhe as parecenças (até por se parecer com demasiadas coisas). O Presidente turco é tão flagrantemente um bad guy que quase podia ter sido inventado num filme americano de outros tempos (tempos em que os sovietes desfilavam, e dominós caíam no telejornal). Há, no entanto, uma sisudez e uma contenção aterradoras, e também um arguto manobrar democrático, que o afastam de qualquer cânone clássico dos vilões. Numa tigela metemos a sobrevivência a um golpe de estado dúbio, digno dum ditador sul-americano de romance político; juntamos os poderes dum califa, título conotado com o mais desprezível grupo terrorista do séc. XXI; bate-se tudo e a mistura não se parece nada com um grão-vizir cartoonesco, parece sim uma sóbria e sombria realidade.

O grande motivo para escolher a temática turca está, contudo, relacionado com um possível sentimento de culpa. Tantos anos de recuos e desconfianças em aceitarmos a Turquia no seio europeu: será que podíamos ter evitado o actual cenário despótico? Foi o nosso vacilar que pariu um ditador? Na verdade, a História e certas ideologias já nos educaram a ter estes sentimentos de culpa, sobretudo quando reduzem os ocidentais a cristãos sobranceiros. Não seremos igualmente sobranceiros nesta tendência tão egoísta de nos responsabilizarmos por tudo? Por muito escandalosos que pareçam os destinos turcos, ainda assim há uma legitimação democrática da maioria dos passos de Edrogan. Se tantas vezes somos multiculturalistas insuportáveis, a fazer queixinhas dum Ocidente que tenta impingir democracia a países que não estão preparados para adoptá-la, como é que podemos sentir culpa no cartório de processos democráticos onde não metemos o bedelho?

Edrogan é uma figura indesejável – é a minha opinião. Será recordado como um tirano – continua a ser a minha opinião, mas que afianço com poucas dúvidas. Infelizmente, a sociedade turca não teve a solidez generalizada para resistir a esta pessoa, nem para fazer prevalecer o impressionante legado democrático de Atatürk. Um visão rigorosa da História, tanto da Europa como da Turquia, provavelmente far-nos-á imaginar que as sementes venenosas - estas agora com ramos umbrosos e frutos amargos dum califado – não teriam sido precavidas pelo acolhimento dos turcos na Comunidade Europeia. Da mesma forma, numa Europa já tão alvoroçada com sharias e islamofobias, que sombra viria trazer ao seu seio um Estado que perdeu a laicidade?

Com mais ou menos transparência, com métodos mais ou menos democráticos, o certo é que a Turquia não quis resistir a um paradigma perigoso e velho (muito mais antiquado que paradas militares sincronizadas). Os turcos não tinham anti-corpos suficientes para rejeitar um déspota islamista como Edrogan. E ainda há quem seja contra vacinas?

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

A referida crónica do José Couto Nogueira. 

Quando vilões que queriam ser califas só queriam interditar a nossa sisudez.

A inacreditável pompa norte-coreana na recepção a Ceausescu.