Na verdade, todos os assuntos são mastigados com tal fúria pelo mural do Facebook e afins que parece nem valer a pena falar seja do que for.
Sendo assim, recuemos 30 anos, muito antes de haver Facebook...
Lisboa em 1988
Uma das primeiras recordações que tenho da cidade é ver uma imagem de fumo a subir, monstruosa, por cima dos famosos telhados da Baixa. Não que eu estivesse em Lisboa — na verdade, estava em Peniche, na cozinha da minha avó Leonor, e fiquei petrificado a olhar para o ecrã. Por outro lado, foi a primeira vez que vi aqueles telhados e aquele sol — e ao fundo o rio e a ponte.
Não vivia em Lisboa, mas ia lá muitas vezes, por vezes na carrinha do meu pai — não havia auto-estradas, mas antes um percurso lento, em duas horas, passando por dentro de terras como a Malveira, que hoje me parece uma recordação de infância.
Lembro-me de andar por Lisboa, uma cidade que, na minha memória, era escura — e chovia. O metropolitano era uma espécie de pesadelo subterrâneo que, mesmo assim, na sua linha única, me entusiasmava como um brinquedo novo...
Se tínhamos de ir à zona de Sintra, passávamos pelo trânsito ainda mais pesado e fumarento do que hoje, nas velhas curvas do Calhariz de Benfica, hoje afogadas por baixo de rápidos viadutos que nos ajudam a chegar mais depressa ao fim da bicha no IC19.
Na Eurovisão... Enfim, tínhamos a Dora a cantar e a família toda a ver os resultados na televisão. Portugal não ganhava essas coisas — aquilo era só política! Aos oito anos, aprendi que a política era aquilo que impedia a vitória de Portugal nos vários concursos em que nos apresentávamos ao serviço.
Bem, tudo para dizer: desse ano, o que fica é esse incêndio — durante muito tempo, visitar o Chiado era passar por umas estruturas de metal que percorriam a ferida no coração da capital.
Lisboa em 1998
No mesmo mês em que fazia 18 anos e me tornava adulto, fui viver para Lisboa, para começar a faculdade — e nesse mesmo mês acabava a Expo. Quis ir sozinho visitar a grande Exposição — no último dia, para seguir a tradição portuguesa. Foi uma experiência assustadora: houve momentos em que não conseguia pôr os pés no chão, apertado no meio da multidão.
Assisti ao fogo de artifício do fim da Expo e tanta gente, excitada, a gritar «Portugal! Portugal!». O que um país faz quando se vê com uma Expo à porta — principalmente um país com tanta fome de ser falado por esse mundo fora como é o nosso.
Voltei para casa num metro onde já era possível trocar de linha, enlatado como nunca me tinha visto. Portugal parecia estar todo ali.
(Meses antes, tinha vindo de propósito a Lisboa para pedir ajuda a umas primas duma amiga minha, para um trabalho da escola — elas percebiam mais do que nós das maravilhas da Internet e apresentaram-nos o SAPO, uma maravilha que descobrimos, meio clandestinos, num computador do Instituto Superior Técnico).
E a Eurovisão? Enfim, depois da espectacular vitória da Lúcia Moniz (um 6.º lugar, tendo em conta a famosa Política, era o melhor que podíamos atingir), deixara de ligar a tal coisa. Bolas, era quase adulto. A Eurovisão era uma coisa um pouco, sei lá, infantil?
Lisboa em 2008
Dez anos depois, nesse ano sem vitórias e sem Expos, já tinha terminado o curso há muito, passara uns anos a estudar um escritor morto em 1998 — e que escrevera um texto lindo sobre o incêndio de 1988 —, estava casado e trabalhava com a minha mulher.
Do que me lembro desse ano?
Lembro-me — o leitor veja isto bem — de ir buscar frangos a uma churrascaria para um almoço em família, quando olho para a televisão e vejo notícias aterradoras duma queda da Bolsa. Eram os sinais da Crise (desta vez uma crise mais internacional, não apenas a crise em que Portugal estava já enredado desde, pelo menos 2002).
Ali, à espera dos frangos, olho para a televisão e sinto qualquer coisa — talvez a certeza de que as crises, estas crises com nome e data, chegam-nos com aviso prévio: aparecem assim na televisão, na forma de setas vermelhas na bolsa e nos indicadores económicos, mas acabam por chegar a nossa casa, como visitas indesejadas, deixando um rasto amargo na vida concreta das pessoas e das famílias — só que depois, muito depois. No entretanto, continuamos a viver como se nada fosse, à espera que ela nos bata à porta.
E bate, claro que bate...
Lisboa em 2018
Dez anos depois: aqui estou, nessa cidade onde já vivo há 20 anos, tantos quantos os anos da Expo — a cidade que ardeu há 30 anos, mas cuja ferida já sarou. Agora, saio de Lisboa para ir visitar a terra onde nasci e demoro 40 minutos. No metro, vejo estações que eram novas em 1998 e hoje têm já o sabor duma recordação. Ah, mas temos várias linhas... O metro até chega à Reboleira! Agora — um lisboeta de 1998 não acreditaria nisto — andamos por aí a queixar-nos que o mundo anda a ligar-nos em demasia: não nos largam a porta e chegam a Lisboa aos magotes, rebentando com o aeroporto e com o sossego das ruas. O lisboeta de 1988 coça a cabeça, intrigado com o desconsolo do lisboeta de 2018.
Entretanto, a Crise passou (mais ou menos), outras crises chegaram, passaram — ou não passaram, porque estas coisas são mais do que as notícias e as crónicas que escrevemos sobre elas: são também a vida das pessoas — e, na verdade, em muitos casos, a crise continua, enquanto noutros nunca chegou a bater à porta.
Agora, neste ano em que comemoramos tanta coisa, teremos cá o festival de cantorias da Europa toda, no espaço da tal Expo, numa cidade que já não arde, mas vê, de boca aberta, como o coração do país ainda agora ardeu, lembrando-nos que nada é limpo e certo, nada é fácil, tudo custa e nunca estamos livres de voltar para trás — e as linhas de metro não valem tudo.
Mas não deixa de saber bem poder voltar atrás no tempo e dizer ao miúdo de oito anos: olha, aquela cidade que vês ali a arder na televisão ainda há-de sarar essa ferida, hás-de para lá ir viver — e se calhar ainda ganhamos a Eurovisão.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor dos livros A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.
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