A equação que determina quando um trabalhador se pode reformar tem a ver com dois factores: o envelhecimento da população em geral e a sustentabilidade do chamado “modelo social” europeu. À medida que a esperança de vida aumenta e a natalidade diminui, a proporção entre os que pagam e os que recebem é cada vez mais difícil de sustentar.

Veja-se o caso de Portugal: em 1974, 8.9 contribuintes “sustentavam” um reformado; em 2021, havia apenas 2,5 activos para cada beneficiário. No nosso caso, o Estado tentou resolver o problema atrelando a idade de acesso à velhice à esperança de vida (a idade média que vive o conjunto dos cidadãos).

Assim, porque essa idade tem vindo a diminuir - infelizmente - e sofreu particularmente com a pandemia, em 2023 é de 66 anos e quatro meses, o que quer dizer que baixou três meses em relação ao ano anterior. A “esperteza” política deste modelo é que desresponsabiliza o Estado da escolha; depende da demografia (a proporção entre as faixas etárias na pirâmide demográfica).

Ora, a demografia tem a ver com os filhos que as pessoas querem ter - cada vez menos - e a longevidade dos séniores - que por acaso diminuiu, mas muito provavelmente voltará a aumentar. Nenhuma medida política pode mudar estas situação a curto prazo. De qualquer maneira, há que reconhecer que apenas duas pessoas e meia a pagar a reforma de uma é muito desfavorável para ambas as partes.

Mas este é o caso de Portugal, que usei só para demonstrar a magnitude do problema. Toda a Europa está a envelhecer e a ter menos filhos, e cada país tem a sua maneira de lidar com a crise. A média europeia da idade da reforma é de 64,3 anos para os homens e 63,5 para as mulheres. Paradoxalmente, dois dos países mais evoluídos, a Noruega e a Islândia, tem a idade de reforma mais desfavorável, 67 anos, enquanto a Grécia, a Itália, Luxemburgo e Eslovénia tem a melhor, 62 anos. O relatório anual da OCDE apresenta estes valores em pormenor.

Então, o que acontece com a França? A idade média da reforma (isto é, incluindo as exceções e o género) é de 62 anos e não depende de nenhuma equação. É o Estado que a pode mudar, através dos mecanismos normais numa democracia: decisão do Presidente, com o aval do Parlamento. O Executivo também tem o recurso do equivalente ao nosso decreto-lei, com o custo político inerente. E é esse custo que o Presidente vai ter de pagar.

A história, todos sabemos, pelas notícias diárias: Macron decidiu executar o que tinha proposto quando das suas candidaturas à presidência, em 2016 e 2021, subir a idade da reforma dos actuais 62 anos para 64 anos. Muito naturalmente, os franceses não gostaram e, como é do seu feitio, vieram logo para a rua protestar.

Primeiro, pacificamente. Depois, à medida que o tempo passava e o Presidente não desistia, mais agressivamente. A situação tem evoluído diariamente, sempre para pior. A Torre Eiffel e o Louvre tiveram de fechar, os ferroviários e os trabalhadores da limpeza entraram em greve, há incêndios a deflagrar no meio da rua, os manifestantes aumentam em número e tornam-se mais violentos, a polícia responde de acordo.

De repente, não é possível andar em Paris sem ver a agitação e sentir o clima de crispação. As ruas estão sujas, as pessoas andam apressadamente, os turistas recolhem-se aos hotéis. Não se pode dizer que seja um clima de guerra civil, mas é certamente uma situação de agitação social como já não se via desde a época dos “coletes amarelos”, em 2018. (Nessa altura a razão inicial foi o aumento dos combustíveis e depois metastisou-se em várias outras queixas). A imprensa francesa explica que a tensão se acumulou na Place de la Nation, com a polícia de choque a recorrer a gás lacrimogéneo para dispersar os manifestantes, que pegaram fogo a caixotes do luxo e atiraram projéteis aos agentes.

Macron levou a proposta às duas câmaras e foi aprovada no Senado no dia 12 de Março, e na Assembleia a 20. (Se quiser acompanhar o caso no Le Monde, veja aquiContudo, como lhe faltou a maioria necessária, vai ter de recorrer ao artigo da Constituição que lhe permite tomar a decisão sozinho.

Mas, se a questão específica da idade da reforma se encerra com este decreto, há outros problemas, dela resultantes, que dão uma perspectiva muito preocupante quanto à qualidade futura da democracia francesa.

Françoise Fressoz, no “Le Monde”, considera que “pela gravidade das questões que levanta, o conflito das reformas não é apenas uma disputa sobre a perenidade do sistema de repartição (da riqueza). Também não é apenas um movimento de protesto, eficazmente dirigido pelos sindicatos, contra a necessidade de trabalhar mais tempo, sendo o trabalho visto como penoso, pouco valorizado, desgastante (...) Transformou-se numa crise do funcionamento democrático, duplicada por uma crise da decisão política, triplicada por uma crise da ordem pública. (...) Perante a possibilidade de uma derrapagem grave, mesmo duma perda total de controle, há duas atitudes que se enfrentam. Desde o dia 24 que o campo da contemporização rendeu-se ao pedir a Macron que faça uma pausa na reforma. A proposta do secretário-geral da CFDT (a CGT francesa), Laurente Berger, foi transmitida no domingo na televisão pelo ex-presidente da República François Holande, que considerou o momento inapropriado e o texto mal negociado.” 

A utilizição do artigo 49.3 (o equivalente ao nosso decreto-lei, como já disse), sendo pouco comum, não está a ser usada pela primeira vez. Michel Rocard, o primeiro-ministro socialista que dirigiu um governo minoritário entre 1988 e 1991, usou-o 28 vezes. Mas abre a porta para a oposição apresentar um voto de desconfiança ao executivo, que agora tem como primeira-ministra Elisabeth Borne. Bastam 289 votos do total de 577. Se ela caír, a posição de Macron fica ainda mais fragilizada e talvez seja obrigado a fazer eleições antecipadas. 

E aqui é que está o grave da situação: quem sai a ganhar é Marine Le Pen. Os republicanos de centro-direita, que apoiam Macron e sempre defenderam o aumento da idade da reforma, mostram-se hesitantes quanto a quem apoiar no futuro. A esquerda, evidentemente, nunca estará com um candidato visto como “burguês”, mas todas as esquerdas juntas não chegam para o “Reagrupamento Nacional”, que é a segunda maior bancada parlamentar.

Nas eleições presidenciais anteriores, Macron só ganhou à segunda volta porque a esquerda tapou o nariz e votou nele, para travar Le Pen. Desta vez, ou seja, numas próximas eleições, antecipadas ou não , as possibilidades dos “nacionais-populistas” são maiores, na medida em que Macron não pode ser eleito uma terceira vez. Talvez por isso, insiste no que quer, usando, como sempre, o argumento da razoabilidade, como se pode ver nesta entrevista do dia 22.

Não deixa de ser irónico que uma reivindicação da esquerda, quiçá justa, leve ao poder um governo de direita - no caso, da direita mais xenófoba e radical. É aquilo a que poderíamos chamar um perversão do sistema democrático. Será preciso reformá-lo? Bem, esta é uma questão sempre em aberto. O que precisa de reforma, sem dúvida, são os métodos das esquerdas, cujos ideais parece que nunca chegam à execução. Como se costuma dizer, a teoria na prática é outra.

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