Soares, então líder da oposição ao governo AD liderado por Balsemão e candidato à reconquista do posto de primeiro-ministro (o que conseguiria dois anos depois), levantou-se da tribuna e às seis em ponto tinha os auscultadores colocados para ouvir ao instante as notícias de França. No momento em que o correspondente em Paris, Virgílio de Lemos, anunciou “É Mitterand”, Adelino Gomes, repórter sempre com o instinto do instante certeiro, abriu o microfone para contar algo que recordo assim: “Aqui no Coliseu, Mário Soares, exultante, levanta os braços para celebrar a eleição de Mitterand”. O líder socialista português decidiu logo ali que iria para Paris no primeiro avião de carreira. Só chegou à casa de Mitterand, na rue de Biévre, à beira da Notre Dame, a meio da manhã seguinte. Perdeu a grande festa popular que entrou pela madrugada dentro nas praças parisienses da Bastilha, da República e de tantas outras de França. Havia a noção de que começava uma nova era na vida francesa e o povo de esquerda celebrava com incontido entusiasmo.

Na noite deste domingo, 7 de maio de 2017, os apoiantes de Macron vão certamente celebrar a eleição do mais jovem presidente na história de França. Mas o entusiasmo popular não será comparável com o de 81. Macron tem uma base de apoio que fica pelos 24%. O acréscimo de percentagem da primeira para a segunda volta resulta da opção civilizacional: para evitar o clima nauseabundo da eleição do ódio e demagogia de uma arruaceira, vota-se, em recurso, na opção razoável. Não estamos perante uma eleição por adesão entusiasmada, mas por defeito, para evitar a outra. Macron ganha sem suscitar ilusão, é para a maior parte o mal menor.

A França política está em implosão. Macron tranquiliza a esquerda da direita e a direita da esquerda. Talvez possa entender-se com o sistema político de que se demarca. Mas a tarefa de tentar reconciliar os franceses com o presidente e o governo é uma quase missão impossível. Metade do eleitorado não só não fala com a outra metade como a detesta. A primeira volta mostrou a atração pelos extremos (mais de 40% dos eleitores). A geografia eleitoral revela uma nítida diagonal a separar duas Franças, é uma linha que vai da fronteira com a Bélgica à fronteira com Espanha: a parte de cima e ocidental, mostra-se apaziguada e aberta, a parte de baixo e de leste, radicalizada no estar contra. As fraturas multiplicam-se, também entre a cidade e o campo e, nas cidades, entre centro e periferias.

Marine Le Pen vai recolher, provavelmente, 30 e tal por cento dos votos. Perto dos 40%. É inquietante que tanta gente adira a um discurso assim de ódio. Nos últimos três anos, Le Pen tinha “civilizado” o discurso, procurando “desdiabolizar” a FN. Mas o debate da última quarta-feira mostrou o regresso do rosto e do discurso que dispara o alerta para perigo. Ficou evidente que com Le Pen não há qualquer possibilidade de esgrima intelectual leal. Ela, com mentiras, insinuações e acusações sem fundamento, tentou que o adversário perdesse a cabeça. Procurou, com verborreia agreste, metê-lo no lodaçal, achincalhá-lo, humilhá-lo. Terá acreditado que poderia encosta-lo às cordas e inverter a tendência de resultado.

Le Pen sabota a discussão democrática e atiça o ódio com a retoma de uma cultura política que era a do pai e que privilegia o espectáculo do fogo oratório, ainda que vazio, ao debate racional, civilizado.

Macron conseguiu não se pôr nervoso com as interrupções constantes de Le Pen. Não se alterou. Explicou-lhe que não tem o direito de insultar as pessoas pela sua origem ou religião, que a saída do Euro seria um desastre, demonstrou-lhe que a França precisa da União Europeia nestes tempos de globalização.

Macron mostrou intuição e audácia de líder. É indiscutível que é um ganhador: em um ano, sem partido e sem uma estrutura experiente, construiu uma startup ganhadora na política.

Os seus apoiantes são maioritariamente da burguesia cosmopolita, comprometida com os direitos civis, com alta qualificação na indústria e nos serviços, gente bem integrada, grande parte entre os 30 e os 45 anos, de uma elite que consome cultura e media internacionais, que frequenta ginásios, que provavelmente já aderiu à bicicleta e aos menus biológicos. É gente de um centrismo liberal, evoluído. Têm confiança.

Do outro lado está uma multidão com baixo rendimento e a sentir insegurança no emprego e na rua. É gente com medo ou revolta, indignada com o sistema político, é a meia França que se sente perdedora e que vê a modernidade globalizada como um mal que traz prejuízo. São os mais de 15 milhões de franceses que votaram pelas extremas.

As feridas desta campanha sem precedentes tendem a não cicatrizar nos próximos tempos. Fica um dilúvio de perguntas sobre como Macron poderá governar e, sobretudo, reformar a França e reconciliar os franceses e dar-lhes esperança. Que tropas vai conseguir mobilizar para as eleições legislativas de 11 e 18 de junho? Como e com quem vai tentar atenuar a “fratura social” e melhorar a França em funda crise económica e social? Vai conseguir desmontar a demagogia de Le Pen?

Se Macron sair desta eleição com um resultado acima dos 62% prognosticados nas sondagens, fica com mais vasta margem para manobra política.

Não basta derrotar Le Pen nesta eleição. Importa que o discurso de intolerância sofra uma derrota pesada. E que a política democrática saiba resolver as questões das pessoas. Ou então a detestável provocação de Le Pen vai continuar a atacar e crescer de eleição para eleição.

Vem a calhar reler o Afirma Pereira, de António Tabucchi: está lá, de modo magistral, como o mal avança perante o maldito desleixo dos cidadãos.

Esta eleição francesa tornou-se uma eleição global.