As mordaças, os preconceitos, as discórdias – e, diacho, são tantos – essas coisas que hoje em dia ainda tentam estreitar-me a acção, parecem afinal torniquetes proveitosos: apertam-me o tubo do debate, fazem-me expelir o contraditório, ferem de morte a ditatorial preguiça. Às vezes até me corrigem. Às vezes até me marimbo. Sou livre para rebater, acatar, ignorar, mas não sinto nisso o prazer da liberdade. O que sinto é a naturalidade das coisas que são como devem ser.
Tal como o ar que respiro — que me é quase tudo, mas do qual não vejo nada — sou cego para a liberdade. Prezo-a tanto que nem chego a pensar nela: inspiro, expiro, deixo que o sangue se oxigene livre; entrego-me a um sistema que não sustenta só a consciência, sustenta-me toda a vida. Quando tenho faltas de ar, aí recordo com sofreguidão o que é a liberdade. Vejo pessoas no outro lado do mundo a precisar de respiração boca-a-boca, e aí recordo com sofreguidão o que é a liberdade. Ouço a pieira nos relatos do “tempo da outra senhora”, e logo recordo com sofreguidão o que é a liberdade. Desejo-a para mim, desejo-a para todos, mas depois respiro-a e volta a ser o ar invisível que ignoro. Não é por ter nascido mimado pela liberdade que a esqueço, esqueço-a porque nasci livre. É natural, é a minha natureza.
Nada sei sobre “viver em liberdade” pois vejo esta expressão como uma redundância. No fundo, é tudo o que sei e tudo o que vivo. É um quotidiano de quarenta e quatro anos. Neste aniversário devemos todos soprar as velas, sobretudo nós que nascemos já depois do 25 de Abril de 1974. Embora fisicamente não tenhamos vindo ao mundo nesse dia, o país em que brotámos foi ali parido. A liberdade que nos precedeu, em que nos forjámos, vem desta data. Os heróis de Abril são parteiras de Abril e hoje é dia de festa, cantam as nossas almas, para todos uma salva de palmas.
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