• 1. O dia em que quase atropelei um guarda civil

Foi por pouco que não apareci nas notícias como o português que atropelou um guarda civil. Tinha a carta há muito pouco tempo — e fui com a minha família até Barcelona, atravessando a costa toda do Mediterrâneo. Fomos numa autocaravana. Sem ar condicionado. Em Agosto. Mas, enfim, a história dessa viagem, que teve as suas peripécias, ficará para outro dia.

Hoje conto apenas isto: ia o meu pai a conduzir o trambolho pela Via do Infante, quase a entrar em Espanha, quando me lembrei que nunca tinha atravessado a fronteira a conduzir! Parece coisa pouca, mas para quem tirou a carta há pouco tempo, este tipo de marcos da vida automobilística tem alguma importância. (Ou então sou só eu que sou peculiar. É possível.)

Pois bem, o meu pai deixa-me pegar na traquitana, apesar de haver um senão: o contrato de aluguer da dita tinha uma cláusula que implicava a proibição de o condutor ter menos de 1 ano de carta — o que era o meu caso.

O meu pai lembrou-se disso, a minha mãe também, mas eu insisti. Eles deixaram: não havia de ser por cinco minutos que a coisa iria correr mal, e eu queria mesmo muito atravessar a fronteira a conduzir.

E assim me meti atrás de um volante enorme, acelerei a fundo e lá fui com a minha família aos saltos pela Via do Infante, para atravessar a fronteira pela primeira vez de pedais nos pés.

Era de noite. Vi aparecer ao fundo a ponte sobre o Guadiana. Espanha à vista e eu a conduzir!

Atravessámos a fronteira e eu feliz…

Pois não é que logo após a fronteira encontrei uma catrefa de guardas civis no meio da estrada? Um deles acenava com a sua luz, fazendo um gesto ambíguo, que eu não sabia se queria dizer «por favor, pare e mostre lá a carta e o contrato dessa coisa para eu poder multá-lo, ou mesmo prendê-lo» ou «siga para a direita, que há obras na estrada».

Sem saber o que fazer, bloqueei. Sim, bloqueei ao volante. Ou seja, continuei a conduzir a autocaravana em direcção ao pobre guarda civil, que arregalou os olhos, continuou a acenar com a luz cada vez mais depressa e desatou a rezar às virgens todas e a maldizer os portugueses todos.

A minha mãe gritou, o meu pai saiu lá de trás para ver o que se passava, os meus irmãos riam-se sem parar e eu consegui dar uma guinada a tempo. Acabei por passar a 30 centímetros do guarda civil e continuei pela estrada fora.

Quando já não via luzes de polícia no retrovisor, travei e implorei ao meu pai para nunca mais me deixar conduzir aquele monstro.

Sentado lá atrás, enquanto avançávamos pela Andaluzia, ainda temi ver atrás de nós as luzes da guarda civil à procura da perigosa carrinha portuguesa. Mas, não. O senhor guarda deu-se por feliz por não acabar os dias debaixo dos pneus de uma autocaravana e hoje ainda lá deve andar, pelas estradas do seu reino. (O meu anjo advogado está aqui a sussurrar-me ao ouvido a dizer para eu declarar que tudo o que contei até agora é ficção. Pronto, admito: não foram 30 cm. Ele nunca correu real perigo. Talvez nem se lembre do episódio. Chega?)

  • 2. A minha primeira vez foi em Ayamonte

Por acaso, foi ali perto que, pela primeira vez, passei a fronteira. Imagino que não seja uma experiência de tal forma inolvidável que uma pessoa a guarde na gaveta das outras primeiras vezes: o primeiro amor, o primeiro beijo, o primeiro…

Mas, enfim, a verdade é que me lembro. Foi muitos anos antes do episódio do guarda civil. Tinha três anos — e passei a fronteira de barco.

Vou contar tudo do início.

Era a primeira vez que passávamos férias no Algarve. Fui com os meus pais e os meus avós maternos — o Avô Manuel e a Avô Gisela — para a Aldeia das Açoteias, que pertencia aos proprietários da loja onde o meu avô trabalhava, na Atouguia da Baleia.

Estas férias, na altura, devem ter sido marcantes: afinal, não era assim tão normal ir de férias para o Algarve — pelo menos, não seria para a minha família. Só assim se explica que esta seja uma das três recordações que tenho da minha vida como filho único (estávamos em 1983 e o meu irmão Diogo nasceria no ano seguinte).

O que tenho na memória é pouca coisa: lembro-me da sala, com um vidro grande virado para um pequeno pinhal à frente da vivenda; lembro-me do corredor para os quartos — e também me lembro de ver um vídeo gravado pela Betamax do meu pai, em que percorríamos a casa até ao quarto e, ao virarmos a câmara, o sol fazia um efeito de luz na lente, como uma tinta branca a sujar o quarto. Sim, essa memória será não do quarto, mas das vezes que vimos o pequeno filme, já de regresso a casa. Mas as memórias são assim, muito a dar para a mistura, não é?

Também me lembro de um pesadelo que tinha muitas vezes por esses dias: estava num lago, em cima de um crocodilo com cornos, que me levava para muito longe, enquanto a minha mãe desesperava na margem… Se alguém souber interpretar tal sonho, faça o favor de me ajudar!

Bem, já me estou a perder. Voltemos ao tema: a primeira vez que passei a fronteira foi nessas férias, quando fomos passear a Vila Real de Santo António. Não havia ponte, mas antes um pequeno ferry. Não me recordo do barco, nem me lembro da primeira vez que pus o pé em Espanha, mas tenho na cabeça a imagem de uma feira espanhola com muitos brinquedos e muita música — e vejo-me na casa de férias a brincar com uma grua. Sim, fui a Espanha comprar uma grua de brincar — uma daquelas cor-de-laranja, bem altas. E assim me fingi construtor nessa sala algarvia de há muitos anos, depois de ter passado a fronteira pela primeira vez.

Dessa passagem por Espanha, há algo que me intriga: será que tivemos de mostrar os bilhetes de identidade? Haveria alfândega no cais de desembarque? Não me lembro. Mas lembro-me que tivemos problemas com os nossos documentos na segunda vez que passei a fronteira.

  • 3. Sem documentos na Portela do Homem

Pois bem, foi no Gerês. Eu teria por volta de 10 anos, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos. Não sei, o meu calendário do telefone ainda não funcionava na altura (mas hei-de procurar uma fotografia que os meus pais têm lá por casa e que deve ter uma data por trás).

A minha alma de infante quase a dar para o adolescente estava pasmada com o Gerês — se há coisa de que me lembro nessa minha vida de viandante motorizado é a beleza prodigiosa daquelas serranias.

Reparem: eu era um puto que só tinha saído do país para ir comprar uma grua a Ayamonte. Não tinha ainda visto assim tanto mundo que me permitisse encarar o Gerês com um ar um pouco mais blasé. Não: eu era ingénuo. Pouco vivido. Para mim, aquilo era o supra-sumo da beleza natural.

Hoje sou mais vivido, um pouco (muito pouco) menos ingénuo — e continuo a arrepiar-me quando penso nas folhas outonais do Gerês, na cascata onde mergulhámos, nessas férias infantis que são o meu paraíso perdido. Tudo é luminoso e tremendo nessas memórias fugidias.

Pois bem, o Gerês, como sabem, fica ali à volta de uma pequena borbulha de Galiza. Arranjei um daqueles mapas turísticos onde o Parque Natural aparecia como território apetitoso em tons verdes num papel de textura vegetal — e, lá no meio da mão esquerda a fechar-se que é o Gerês, estava um espaço em branco, sem nada, onde aparecia, sumida, a palavra «ESPANHA». Pois eu queria ir a Espanha, queria passar a fronteira. Queria ir à Portela do Homem!

Éramos cinco: os meus pais, o Diogo, que teria uns 6 anos, e o Tiago, com 3 anos. Faltava ainda a minha irmã, que chegaria à família uns anos depois.

À época, as crianças não tinham cartões do cidadão — nem bilhetes de identidade. Havia uma coisa chamada cédula pessoal e era isso que o Tiago tinha — ou melhor, não tinha, pois os meus pais tinham-se esquecido dela em casa.

Vivíamos nesses tempos antigos antes de Schengen. As fronteiras eram coisa séria: ir a Espanha implicava mostrar documentos a polícias.

Ora, não fazia mal. Podíamos sempre tentar. Fomos então até à Portela do Homem. Chegámos lá e fomos falar com os senhores guardas. Como nos explicaram de forma muito simpática, sem a cédula do meu irmão, não podíamos passar. Os meus pais perguntaram se podíamos só pôr os pés em Espanha. Os guardas encolheram os ombros e disseram que, se é para pôr os pés e voltar, não havia problema.

E foi assim que fiquei com uma foto tirada por um guarda em que estamos todos por trás da placa que diz «ESPAÑA» — uma placa branca, anterior às estrelinhas europeias.

Lá muito atrás, sem que eu (ou ninguém) ligasse alguma coisa ao assunto, aparecia outra placa que dizia «GALICIA». Está ali, na foto, como um fantasma de conversas futuras, de obsessões que haveria de ganhar no futuro.

  • 4. Mérida: a beleza para lá da fronteira

Eu nem queria ir — mas o professor Tavares, que já tinha sido professor do meu pai e desesperava da minha timidez, tão diferente da desenvoltura típica da família, obrigou-me a inscrever. «Vais a Mérida, sim!»

E lá fomos, no autocarro, nessa excitação de putos em viagem sem os pais. Até à fronteira, não me lembro de nada — depois da fronteira, lembro-me apenas de duas coisas: uma vaga imagem de um museu com peças romanas; e da beleza.

Qual beleza? Da cidade, ou das ruínas — e da mais bela rapariga da minha turma, que, ao final da tarde, enquanto os pobres mortais que éramos nós ouvíamos a modorra a sair da boca do guia no anfiteatro romano, se sentou armada em deusa no cimo duma coluna e se pôs a olhar para tudo, mão no queixo, cabelo ao sol alaranjado do final da tarde — e foi assim que, certamente sem querer, ficou para sempre gravada na minha memória como exemplo da beleza humana, bem real e muito viva, misturada com a História e as pedras e as ruínas do tempo. Fiquei de boca aberta e só avancei quando o colega de trás me empurrou, impaciente, sem reparar que a beleza tinha descido à terra.

Mas não é para falar do espanto adolescente perante a beleza duma rapariga que trouxe à liça essa viagem. É para falar do momento preciso em que passámos a fronteira. Alguns dos meus colegas nunca tinham saído de Portugal — eu já, mas confesso que estava tão excitado como eles.

Pois lembro-me de uma colega que, logo que passou a fronteira, começou aos gritos de excitação e gritou algo como «olha uma árvore espanhola!»

Foi o fim da picada. O autocarro desatou a rir-se e o mais sarcástico dos rapazes da turma começou a imitá-la durante longos minutos:

«Olha um cão espanhol!»

«Olha uma estrada espanhola!»

«Olha um café espanhol!»

«Olha um passarinho espanhol!»

«Olha uma pessoa espanhola!» — e abanava os ombros da minha colega, que já não estava a gostar da brincadeira, animando-a aos gritos para que se sentisse excitada pela visão repentina desse ser mítico: o Ser Humano Espanhol!

A brincadeira começou a rolar como bola por uma montanha cheia de neve e, pouco depois, o autocarro estava todo de dedo em riste a apontar para o mundo espanhol. No dia seguinte, já no hotel de Mérida, pelos corredores, ainda se ouviam vozes a gritar:

«Olha uma cadeira espanhola!»

«Olha um tapete espanhol!»

«Olha uma sanita espanhola!» — e outras descobertas menos edificantes e que me abstenho de enumerar.

Pois, na verdade, a minha colega não tinha culpa. Passar uma fronteira faz isto a uma pessoa. Há a promessa de coisas novas e de algum perigo — cheira irremediavelmente a viagem e a aventura.

Agora já não há paragens obrigatórias, bichas de carros, polícias carrancudos. O que há é uma placa simples — e logo a seguir, outra língua, uma estrada ligeiramente diferente, gentes com hábitos que não são os nossos. Reparamos quase instintivamente nessas diferenças, que tendemos a empolar. A fronteira dá uma instrução aos nossos olhos: a partir daqui, estás noutro país. A partir daqui, deves reparar no que é diferente. A partir daqui, isto não é teu. Estás fora do que é habitual. Estás a viajar e os dias não são normais.

  • 5. Ir a Espanha duas vezes na mesma noite
Mapa
Crónica Marco Neves créditos: 24

Ora, esta tal atracção da fronteira levou-me a uma das «loucuras» dos anos de faculdade. (Deixo a palavra entre aspas porque, enfim, todos sabemos que há loucuras bem mais loucas do que esta.)

Uma noite, o Nuno, o Rodrigo, a Rita e eu decidimos ir tomar café à Outra Banda.

O problema de tomar café em Almada é que uma pessoa chega lá e o que apetece mesmo é continuar pela estrada fora, a conversar — até porque já era tarde e os cafés de Almada já tinham fechado.

Ficou decidido: iríamos experimentar as delícias dos bares de Évora. Cá por dentro, eu tinha outros planos, mas não disse nada.

Chegados a Évora, já depois da meia-noite, não encontrámos nada aberto.

Foi então que dei a sugestão: já sabemos que os espanhóis têm horários esquisitos, por isso não seria mal pensado tomar café em Badajoz! Eles ainda reclamaram um pouco, mas fiz-lhes ver que quem ia a conduzir era eu.

E assim fomos, numa dessas noites que não são fáceis de explicar, cinco amigos dentro dum carro, pela noite fora, numa auto-estrada escura, em direcção a um café para lá da fronteira.

Quando passámos a tal linha, ninguém gritou «olha uma árvore espanhola!». Éramos estudantes universitários, com toda a sabedoria do mundo e arredores, e para mais eram cinco da manhã e o cansaço não era pouco.

Fomos andando pelos semáforos inutilmente ligados das ruas vazias de Badajoz.

Encontrámos, por fim, um café de luzes acesas. O Rodrigo e o Nuno ficaram no carro, enquanto a Rita e eu fomos comprar uma garrafa de água, que por aqueles momentos já era só o que nos apetecia.

E entrámos assim num café espanhol às cinco da manhã e vimos o que nunca pensámos ver: a meio da noite, famílias inteiras tomavam refeições e conversavam, num café tão animado como Lisboa às cinco da tarde.

Não sei que horários as gentes de Badajoz seguem. Sei que, enfim, por lá já eram seis da manhã, o que explica, em parte, o mistério. Mas não explica tudo: o que faziam tantas crianças acordadas àquela hora?

Não sei e também não quis saber. Estávamos cansados. Sentei-me ao volante e voltámos para Portugal, a beber sofregamente a água, depois de uma noite à míngua.

Ou melhor… (Aqui, a história começa a ficar confusa.) Quando dei por mim, estava a sair da auto-estrada. Ainda andámos durante bastante tempo, as cabeças deles já a tombar de sono. Eu mordia a língua, sem vestígio de cansaço: havia de atravessar a fronteira mais uma vez naquela noite.

Quando apareceu a placa a dizer «ESPAÑA», os meus companheiros de viagem sobressaltaram-se:

— Então, mas não estamos a ir para Lisboa?

Expliquei-lhes que sim, mas não queria acabar a noite sem conhecer uma fronteira por onde nunca tinha passado: a de Campo Maior.

Eles abanaram a cabeça, mas riram-se (tive sorte).

Acabámos (os três rapazes) a devolver a Espanha a água que compráramos em Badajoz — isto, claro, com os pés bem assentes em Portugal.

E depois regressámos, por fim, já o sol subia e a névoa rodeava as oliveiras nas margens da auto-estrada. Lembro-me de atravessar a Ponte Vasco da Gama no meio do nevoeiro mais denso que alguma vez vi na minha vida e de dormir profundamente durante toda a manhã, já na minha cama, depois da noite em que fui duas vezes a Espanha.

Porque conto tudo isto? Não sei bem. Talvez para provar que a fronteira exerce uma atracção particular nalgumas pessoas, entre as quais me incluo, para mal dos meus pecados e dos pecados de alguns amigos meus. Ou então é só para me divertir a contar histórias. Seja por que razão for, hei-de continuar a trazer para aqui algumas aventuras que vivi para lá da raia.

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