Caro passageiro, tenha em atenção as bombas
Ia eu muito bem, no metro de Nova Iorque, a caminho duma abadia francesa. A frase é estranha, mas é quase verdadeira. Ia visitar o museu The Cloisters, que mais não é do que uns quantos claustros de abadias francesas reconstruídos na Grande Maçã — é uma história que dava para uma crónica só por si.
O certo é que, para lá chegar, tinha de atravessar a ilha de Manhattan de baixo para cima. O percurso, de metro, leva quase uma hora. Tive muito tempo para ler e para me entreter a observar como, numa só linha de metro, sem sair da mesma carruagem, a paisagem humana muda à medida que sobem os números das ruas. Uma mesma carruagem é diferente ao pé de Times Square ou no Harlem — e isto é assim em todas as cidades, mas em Nova Iorque, com a sua geografia bem clara e numérica, é mais fácil de perceber.
Pois bem: ia eu na carruagem, entretido entre um livro e a minha observação antropológica do Homo Americanus, quando recebo uma mensagem no telemóvel. Dizia-me a mensagem que havia uma bomba e devia ir de imediato para casa.
Levantei a cabeça, boca meio aberta. Para casa? Não dá jeito, fica longe e tenho um oceano no meio.
Bomba? Bomba??
Olho em redor. Vários telemóveis apitam ao mesmo tempo. Todas as pessoas estão a receber o mesmo aviso, uma daquelas mensagens genéricas enviadas aos telemóveis ligados às antenas da zona.
A carruagem ia cheia. E cheia continuou pela ilha acima. Fiquei um pouco admirado e (confesso) algo desiludido. Gostava de ver um pouco de pânico, um pouco de acção, alguma coisa que me permitisse dar cor a esta crónica (que decidi escrever naquele momento).
Não, os nova-iorquinos nem chegaram a encolher os ombros — nem quando o metro parou a meio do túnel, por causa da enorme explosão que ocorrera uns metros à frente. Isto já era da minha imaginação delirante, embora o comboio tenha parado mesmo.
Com o comboio parado, não querendo entrar num pânico ridículo, fiz mais do que os meus companheiros de carruagem: encolhi os ombros com um leve suor na testa, esperei pacientemente pela explosão e, enfim, activei o roaming de dados do meu telemóvel só para tentar perceber o que se estava a passar. Fez-se luz: um maluquinho qualquer enviara não sei quantos pacotes suspeitos para várias pessoas, entre elas Hillary Clinton e o presidente da CNN.
Continuei até ao final da linha, fui ao tal museu, voltei. No regresso, lá recebo a mensagem: estava tudo bem, nada iria explodir. Saí para a rua. Era a loucura: toda a gente a correr, carros da polícia em todas as ruas, filas imensas, buzinas sem fim, nervos e gritaria. Ou seja, um dia normal em Nova Iorque.
Como água que se esvai
Falemos agora de ataques um pouco mais sérios, que não chegam por correio. Nesses dias em Nova Iorque, também fui ao Memorial do 11 de Setembro, essa data em que umas ideias inflamadas na cabeça de vários homens acabaram na morte de milhares de pessoas.
Estava a pensar encontrar algo simples, onde poderia passar em silêncio, mas sem nada que me incomodasse por aí além: afinal, sei o que foi o 11 de Setembro, sei quantas pessoas morreram, não é novidade e já passaram muitos anos...
Mas chego lá e levo uma chapada na cara. No lugar das tuas torres, estão duas piscinas, palavra que não mostra o que de facto é aquilo. São duas esculturas gigantes feitas de pedra e água. A todo o redor de cada piscina há uma cascata e, no fundo, ao centro, há um poço infinito por onde cai a água.
Sei que é uma ilusão: mas a nossa perspectiva faz-nos crer que aquela água cai para o centro da Terra. Em redor, os nomes de todos os mortos — todos os dias, os funcionários do Memorial deixam uma rosa nos nomes das vítimas que fariam anos naquele dia. Com tantos mortos, todos os dias vemos muitas rosas.
Ali, onde estavam as duas torres, encontrei um monumento à tristeza simples de ver tantas pessoas partir demasiado cedo. Sem raiva, aquele é um monumento triste, belo e perturbador.
Saí dali a morder o lábio. Todos nós sobrevivemos todos os dias, mas há um dia em que tudo falha.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras.
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