A parede de televisões da minha infância
Quando eu era novo, ficava muitas vezes a olhar de boca aberta para a parede de televisões na loja de electrodomésticos do meu pai. Não ficava espantado com aquilo que via: também tinha em casa o Canal 1 e a TV2. O que me hipnotizava era a repetição da mesma imagem em tantos ecrãs.
De vez em quando, uma televisão ainda por sintonizar aparecia lá pelo meio e eu aproximava-me daquela imagem estranha, a emitir um barulho cinzento de chuva a cair em lugar nenhum. Um ruído macio, que ali ficava à espera de que alguém se lembrasse de escolher um canal. Pouco há a dizer sobre a estática da televisão, não é? E, no entanto, até há. Já lá vamos.
Mal ou bem, crescemos quase todos com a televisão. Algumas das nossas recordações de infância e adolescência são músicas ou cenas de programas de televisão. Pois, por estes dias, estão a acabar duas séries que marcaram a última década.
Uma delas tem dragões e fogo e não vale a pena dizer qual é.
A outra é A Teoria do Big Bang — uma série leve sobre ciência a sério, que brinca com as caricaturas que fazemos dos outros e com os desencontros entre pessoas muito diferentes (enfim, uma descrição que serve para muitas outras séries, mas não importa). O certo é que vi muitos episódios — e fico sempre bem-disposto com o Sheldon e companhia.
O Universo em poucos segundos
Ora, quem conhece a série sabe que o genérico, mais do que o Rossio na Rua da Betesga, enfia a História do Universo em poucos segundos de música acelerada. E tudo começou — como diz a música — há 14 mil milhões de anos, com uma grande explosão. A explosão que dá nome ao programa...
O Big Bang é a explicação mais plausível para algo que se tornou claro durante o século XX: o Universo está a expandir-se. Fazendo contas que estão muito para lá do que o comum dos mortais sabe fazer, os físicos chegaram à conclusão de que essa expansão implica que o universo já foi minúsculo e que, a partir daí, começou a expandir-se como numa explosão.
Não foi uma teoria aceite logo às primeiras. Muitos físicos recusaram a ideia. O próprio Einstein andou a tentar encontrar outra explicação para os dados observados.
Uma das formas de testar uma teoria científica é olhar para as previsões da teoria e tentar perceber se se confirmam ou não. Ora, os cientistas dos anos 40 que estudavam a questão previram o seguinte: se, de facto, o universo começou por ser minúsculo, esse universo primordial — que seria muito denso e muito quente —, ao expandir-se, deixaria restos de radiação. Se essa radiação fosse encontrada, ficaríamos muito mais perto de poder dizer que o Big Bang aconteceu mesmo.
Foi uma previsão teórica — que se confirmou! Nos anos 60, Arno Penzias e Robert Wilson descobriram a radiação cósmica de fundo em microondas, uma radiação que perpassa todo o universo conhecido e é uma das indicações mais claras de que, de facto, o universo começou por ser muito mais pequeno, muito mais denso e muito mais quente do que é hoje.
Como viajar até ao princípio do tempo?
Estas descobertas são complexas, eivadas de matemática avançada. E, no entanto, andarmos uma vida inteira a passar ao lado do que se vai sabendo sobre a origem do universo é um desperdício de curiosidade humana.
Há livros — muitos livros — que nos ajudam a compreender um pouco melhor o que se sabe (e o que não se sabe) sobre o Universo. Um desses livros foi escrito por um cientista bem famoso, falecido no ano passado. Falo de Stephen Hawking — que, para lá de ser quem é, foi também personagem na série A Teoria do Big Bang. O seu livro Breve História do Tempo leva-nos ao início do Universo. O que se pode pedir mais?
Mas a imaginação orientada pelas palavras de um grande cientista não é a única maneira de olhar para o Big Bang. Aquela chuva cinzenta que nos invadia os ecrãs de televisão continha vestígios da tal radiação cósmica de fundo.
Sim: ao olharmos para uma televisão onde não passava nenhum canal, estávamos a olhar para o princípio do universo! Lembro-me bem de ver os vestígios dessa radiação na parede de televisões na loja do meu pai — só que não sabia o que era...
Usei o pretérito no último parágrafo. Porquê? Porque hoje em dia, com a televisão por cabo, já não temos a estática a chover-nos nos ecrãs. Mas não faz mal. Se virmos bem, tudo o que nos rodeia — as estrelas, o Sol, a Terra, a terra que pisamos, as células do nosso corpo, o ecrã em que o meu caríssimo leitor está a ler este texto — tudo são restos do Big Bang, uma explosão que começou há 14 mil milhões de anos e ainda não acabou.
Marco Neves | Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.
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