Quando pensamos em Europa que imagens é que aparecem na nossa cabeça? Certamente algo como um sistema de boas relações, lugar homogéneo de liberdade, com afinidades político-económico-culturais, onde a vida democrática comum e a prática de um modelo social de solidariedade são protegidas. Foi com estes ideais que foram lançadas ajudas generosas para regiões menos desenvolvidas na Europa mais pobre. Foi com esse altruísmo que nasceu o programa Erasmus para a livre circulação de estudantes. E Schengen para nos livrar das burocracias de fronteiras. Até a (percebemos agora que muito mal preparada) moeda comum. Nesta Europa até já deixámos de evocar o valor supremo de ser terra de paz, tão fora do nosso presente estão os sofrimentos das grandes guerras. Provavelmente, faz-nos falta essa memória como fio que liga o passado ao presente e que dá alicerce ao futuro. Na entrada neste século XXI sonhava-se com uma Europa de prosperidade que fosse muito mais do que a soma dos distintos interesses nacionais. O que temos hoje é o oposto a isso tudo, em vez de solidariedade e estímulo crescem o egoísmo e o ressentimento. E as ameaças. E a xenofobia como um veneno que alastra com feroz vontade de exclusão. A par do desemprego, das incertezas e do medo. É um tempo de desencanto com esta tão heterogénea Europa e de persistente ausência de respostas eficazes à crise.
A Áustria, embora partida ao meio, esquivou-se esta semana à eleição de um presidente originário de um partido com herança pós-nazi e totalmente contra os valores fundadores da Europa. Mas na Polónia já governa uma direita tão anti-europeísta quanto contra os estrangeiros do sul. Na Hungria e na Eslováquia avançam idênticos nacional-conservadorismos. Em todos estes países e em outros mais a liberdade está a ser condicionada. Crescem os populismos em todos os cinco países escandinavos. Tal como na Holanda e na Itália. Em França, daqui a um ano, talvez o moderado Juppé, um cavalheiro de salão, consiga, provavelmente também por poucos votos, travar a chegada de Marine Le Pen à presidência.
O discurso que se impõe na agenda política europeia e que ganha votos é o de revolta contra o sistema que governou a tempestade de arrazadora potência desta última década. Os males já vinham de antes, mas a crise económica que não passa, a prevalência da ideologia financeira e dos interesses económicos e a globalização mal governada fez desmoronar as traves que suportavam o sonho ou a ilusão europeia. As classes médias que antes se sentiam atraídas pelo ideal europeu, agora já não têm aquela vontade de Europa. Tantos britânicos querem deixá-la. Tantos europeus estão a preferir o seu país entrincheirado frente aos mandatos de Bruxelas. Estão furiosos deste presente e têm medo do futuro, pensam que se protegem ao levantar barreiras.
Talvez o referendo sobre o Brexit, daqui a um mês, possa ajudar a um relançamento cultural e político da Europa. Talvez a Alemanha e a França e os outros consigam perceber que é preciso mudar bruscamente de rumo para salvar a União Europeia tal como ela foi sonhada. Talvez ainda possamos sair deste purgatório e evitar o inferno.
Faz pensar: em toda a Europa, apenas Portugal e Espanha, porventura em remoto efeito de vacina de Salazar e Franco, permanecem impenetráveis pela vaga populista que avança por esta Europa. Mas metade da Áustria, embora sem ter ganho a presidência, ufana-se pela enorme votação por um sistema que também é o proclamado por Trump nos EUA, e que continua a conquistar apoios entre quem está farto do que tem sido isto tudo.
O realizador Ken Loach, no filme agora premiado em Cannes, conta o drama de um viúvo com saúde precária perante a revoltante burocracia do sistema britânico de segurança social, mas um homem que não deixa de ter forças para ser solidário com uma mãe a quem fecham as portas. No palco de Cannes, quando falou ao receber a Palma de Ouro, Ken Loach denunciou "as políticas neoliberais que atiraram milhões de pessoas para a pobreza, conduzindo-nos para a catástrofe".
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