Não é coisa bonita de se ver. A ordem mundial criada a partir de 1945 considerava a feroz persistência norte-americana como um ícone (ou uma maldição, conforme os pontos de vista). Terminada a Guerra Fria, com o desmantelamento do Bloco Soviético, em 1989, parecia que nada poderia perturbar a Pax Americana. Desafios sempre surgiam, mas nenhum parecia suficiente para abalar o status quo. Agora, num virar de mesa espetacular, é um desafio dentro do próprio país que ameaça esfrangalhá-lo, desfazendo ao mesmo tempo o sistema geopolítico de alianças internacionais que o justificava e mantinha. A China, candidato incontestável a maior potência mundial, não precisa de fazer mais do que preencher o vácuo deixado pelos norte-americanos.
E não foi a eleição de um Presidente patologicamente narcisista e perigosamente incompetente que levou a este estado de coisas. Donald Trump, que agora é causa, começou por ser consequência. A sua ascensão só foi possível porque as contradições internas do país chegaram ao ponto de rotura ou, pelo menos, de incapacidade de regeneração. As forças antagónicas que se contrapesavam, dando um equilíbrio a muitos excessos – como a maior percentagem de população carcerária do mundo ou o mais poderoso exército do planeta – procuraram novas alianças e antagonismos, numa situação caótica.
Nesta análise necessariamente simplista, podemos ver o que está a acontecer com as forças da nação que gosta de se definir como “Home of the Brave, Land of the Free” (“A casa dos bravos, o lar dos homens livres.”). Uma intelectualidade urbana altamente educada e cientificamente pioneira, que orientou o poder durante décadas, vê-se subitamente posta em causa e mesmo derrotada pela mais vasta população dos despossuídos, dos ignorantes e dos crentes militantes. Por outro lado, a comunicação social e o poder político, que faziam dobradinha para manter a ordem vigente, entraram em choque frontal, com os jornalistas a desprezar abertamente a classe política e os políticos a atiçar a vasta população que tinham abandonado contra os homens da informação. Hoje, nos jornais, nas televisões e nos meios eletrónicos, leem-se e ouvem-se insultos ao Executivo e dichotes sobre o Legislativo como nunca se tinha visto. E o Executivo, Trump em particular, acusa-os de mentirosos. Os visados acusam os acusadores de serem parciais e maus perdedores; os acusadores demonstram por a+b as indecisões e más decisões dos poderes institucionais.
Mas nem sequer há uma uniformidade de alianças e hostilidades entre os grupos ou dentro deles. O Partido Republicano, que aceita um Presidente que nem era do partido apenas porque lhe dá o poder, está dividido entre os conservadores, que querem uma legislação capitalista radical sem supervisão estatal, os ultra-conservadores, que têm uma agenda de valores morais pré-Idade Moderna, os moderados, que pretendem um Estado mínimo, e as franjas extremistas – a chamada alt-right – racistas e viradas para o ódio como razão de ser.
Os republicanos não se entendem, ao ponto de não conseguirem substituir a legislação de apoios sociais – o Obamacare – que sempre quiseram destruir. O Estado Social embrionário – quase nulo, em termos europeus – que vem de Lyndon Johnson e que o Barack Obama tinha conseguido estruturar a duras penas, está à mercê dos seus inimigos, mas os seus inimigos nem conseguem concordar nos termos da destruição. São os próprios republicanos, como o senador McCain, a afirmar que a nova legislação da segurança social está morta antes de nascer. Ou seja, o Poder Legislativo está bloqueado. Dele só saem leis aterradoras que fazem recuar décadas de controlo ecológico, eliminam os apoios às artes e cultura e deixam os trabalhadores à mercê do mercado especulativo. Discretamente, o Congresso tem promulgado muita legislação avulsa que corrói conquistas que se pensavam irreversíveis, como o planeamento familiar, os direitos das mulheres e das minorias e o ensino universal gratuito. Mas o diploma mais importante, mais prometido e mais aguardado, do qual depende a sobrevivência de mais de 22 milhões de pessoas, está encravado em negociações sem termo à vista.
Quanto ao Poder Executivo, não se conseguiu livrar da mais surreal das suspeitas: de que terá ganho o poder com a ajuda do arqui-inimigo dos Estados Unidos, a Federação Russa. Porque o facto é que, embora o socialismo tenha terminado na Rússia, foi substituído por uma autocracia de direita que mantém o antagonismo da Guerra Fria. Agora já não há uma justificação ideológica; os princípios foram substituídos pelos interesses. Putin quer que o seu país seja novamente uma grande potência e quer um Presidente americano que lhe facilite a ambição. Daí a ter apostado abertamente em Trump, (sobre quem terá informações que possibilitam uma chantagem) atacando por meios obscuros e ilegais a candidatura democrata. O Partido Republicano sabe-o – toda a gente sabe, desde o primeiro escândalo, que envolveu o general Flynn, até ao último, que aponta para Trump Jr. – mas não pode admiti-lo, porque lhe dá jeito ter um Presidente imobilizado que não lhe perturbe a agenda legislativa retrógrada.
Dentro do próprio Executivo não faltam desentendimentos. Trump tem o hábito de tweetar diretamente para o público os seus pensamentos, contrariando as afirmações dos assessores, que se veem em palpos-de-aranha para justificar o injustificável e nunca sabem o disparate que virá a seguir. Deste modo ultrapassa o filtro da comunicação social, que considera hostil, chegando diretamente ao eleitorado; mas mostra também a sua superficialidade, o interesse por questões comezinhas e os pequenos ódios de estimação que deveriam estar acima do seu estatuto institucional.
Nos contactos internacionais, Trump tem andado entre as figuras tristes e as atitudes políticas desastrosas para os interesses americanos. Os líderes mundiais já não escondem a perplexidade perante um dirigente da maior potência planetária que acumula gafes diplomáticas, exibições de vedetismo e mau caráter, ao mesmo tempo que desfaz acordos laboriosamente trabalhados e renega alianças de décadas.
As atitudes inopinadas e inexplicáveis sucedem-se a um ritmo imparável; Trump, na Polónia, a defender o maniqueísmo ocidente/oriente; Trump, na Arábia Saudita, a dar apoio a um regime medieval; Trump, na cimeira do G20, a negar o aquecimento global. E, como quadro de fundo, o estranho relacionamento de Trump com Putin, avaliando com o homem que promove a guerra cibernética a possibilidade surreal de uma unidade comum de segurança cibernética. Como disse o senador Marco Rubio, “é a mesma coisa do que associar-se a Assad para criar uma unidade contra as armas químicas”.
Seis meses depois das eleições, ainda há milhares de postos desocupados no aparelho de Estado – os seus anteriores ocupantes ou foram despedidos ou saíram por mote próprio, e o Executivo, concentrado na questão da interferência russa, no atraso na reforma do Obamacare, ou em questões de segunda ordem, ainda não teve tempo de os preencher...
O envolvimento dos próximos de Trump com os russos será, provavelmente, o que fará cair o Presidente. Todas as semanas veem à crua luz das câmaras novas provas. A última, ainda em desenvolvimento, foi a admissão da parte de Trump Jr. de que ele, o “primeiro-genro”, Jared Kushner, e Paul Manafort, ex-líder da campanha presidencial, se encontraram com uma agente do governo russo, Natalia Veselniskaya, que teria documentação para prejudicar a campanha de Hillary Clinton. Não se trata apenas de mais um episódio na interminável saga das ligações entre os próximos de Trump e os russos; a palavra que começa a surgir até entre republicanos já não é “collusion” (conluio) mas sim “treason” (traição).
Se Donald Trump for impedido, quem assume a presidência é Mike Pence, considerado ainda mais reacionário do que o Presidente. As suas posições nas questões sociais (interrupção voluntária da gravidez, o movimento LBGT, liberalização das drogas leves, imigração) são ultra conservadoras, mas em política internacional seguirá provavelmente uma agenda mais tradicional. Por muito mau que seja, pelo menos os Estados Unidos voltarão a ter um Norte.
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