Muitos especialistas e comentadores têm demonstrado a sua preocupação em relação aos perigos do desconfinamento que se iniciou há mais de uma semana, mas vejo pouca gente com reservas em relação ao desCofinamento que aconteceu nos últimos dias.

O caso da menina assassinada em Peniche permitiu à CMTV sair da casca, uma camada protetora na qual permanecia em tempos de Estado de Emergência, decretado por causa uma doença que é causada por aquilo que a CMTV chamava de "vírus da China" (hoje apenas o 11º país na lista dos mais afectados). Dois meses monotemáticos, marcados por uma presença sem precedentes de cientistas em televisão (e sem crimes para "especialistas" comentarem), obrigaram a CMTV — já que os portugueses queriam era informação sobre a pandemia — a armazenar a faca e o alguidar na arrecadação.

Mas tudo mudou nos últimos dias. O domínio do espaço mediático pela covid-19 cansa, compreensivelmente, tanto jornalistas como espectadores. Outros temas foram surgindo nos alinhamentos dos noticiários. Fala-se de Novo Banco, do Caso de Tancos, da nacionalização da TAP. A meio da última semana, uma criança desaparece em Atouguia da Baleia. A CMTV fervilha. Depois da condenação de Rosa Grilo, terá aqui o seu novo whodunnit?

Não teve. Passados dois dias, a criança aparece morta. Em breve, o pai confessaria o crime. O caso que poderia dar azo, ao longo de vários meses, a inúmeros directos, especiais e painéis no canal com mais sucesso do cabo, foi resolvido na mesma semana em que eclodiu. Então, a CMTV teve de ser CMTV.

Se não aproveitasse a dor e os sentimentos à flor da pele que estas situações macabras suscitam, não seria o canal que conhecemos. Entre outros, destaque-se o repórter que pergunta a transeuntes se "nestes casos não devia haver justiça popular". Atenção: não é um entrevistado a sugerir isso perante a complacência do jornalista, é um jornalista a sugerir activamente isso ao entrevistado. Resultado: audiências e quota de mercado históricas no passado domingo. O crime sobre crime compensa? Parece que sim.

Especula-se que diversas profissões irão desaparecer nas próximas décadas, com o avanço da mecanização. Em tempos, considerei que actividades como o jornalismo, pela sua dependência do espírito crítico e pela necessidade de ser livre, jamais pudesse ser substituído por máquinas. Enganei-me. Com uma tamanha falta de empatia e de auto-consciência dos actuais humanos, sugiro que a Cofina poupe dinheiro. É altura de empossar uma direção inteiramente composta por robôs.

Recomendações

Esta série, especificamente o 5º episódio que fala do papel das televisões no julgamento de uma violação em grupo ocorrida no seio da comunidade portuguesa do Massachusetts.