1. Não vinha a Maputo há dez anos. A primeira vez foi há vinte-e-um. As acácias continuam a brotar dos passeios quebrados. A noite, claro, continua a cair num piscar de olhos, e pouco depois a cidade alta fica deserta, porque quem lá trabalha corre para os “chapas”, como aqui se chamam as carrinhas de transporte colectivo, para a cidade baixa, para o caniço, onde mora a grande maioria. Mas o que me diz quem reencontro é que as coisas estão piores do que há dez, do que há vinte anos. Um dia Moçambique acordou e havia um buraco de dois biliões de dólares. Dinheiro de empréstimos desviado. O escândalo paralisou as ajudas externas, centrais no orçamento. Moçambique ficou em suspenso, os pedintes multiplicaram-se. Para o mês há eleições autárquicas. E não se discutem propriamente alternativas reais ao partido no poder. Porque o partido no poder continua a ser O Partido. Daqueles cujo nome nem é preciso dizer.

2. Quando conheci Mauro Pinto em Maputo, há dez anos, ele levou-me pela cidade delirante, abandonada, longe da fachada. Era a cidade que a sua câmara analógica seguia. O universo paralelo dos seus personagens, até ao bairro da Mafalala. Acabámos debaixo de uma árvore grande como um mamute, espécie de rotunda do bairro, onde uma curandeira vendia magias. Reencontrámo-nos algumas vezes em Portugal, nunca mais aqui. Agora conseguimos, entre Mauro chegar de uma feira de arte em Joanesburgo e partir para o Paris Photo, onde vai mostrar “Dá Licença”, trabalho que ganhou o Prémio BES/Novo Banco, e que ele descreve como uma “árvore genealógica” através dos móveis, da luz, das bugigangas dos “negros, mestiços, emigrantes, imigrados, resistentes”, na Mafalala.

Entre a primeira vez que nos vimos e agora, Mauro tornou-se provavelmente o artista moçambicano da sua geração que mais circula pelo mundo. E está neste momento a desenhar-se uma exposição individual para 2019 em Lisboa e Maputo, com uma série recente.

3. Mauro tem esse trabalho no telefone, mostra-mo. São fotografias feitas numa mina de carvão em Tete, bem no interior do país. Uma mina clandestina, de onde os habitantes locais extraem carvão para cozer tijolos. Nas imediações ficam as minas oficiais, de onde o carvão sai para todo o mundo, como a da brasileira Vale. Uma das grandes responsáveis pelo pior desastre ambiental do Brasil, uma enxurrada de lama que matou o rio Doce, em 2015. Mas isso não a impediu de continuar a explorar outros solos, e de ter luz verde para isso.

Não é raro o carvão ser transportado a céu aberto através de aldeias, vilas, soltando fuligem, poluindo o ar, conta Mauro, que tem dado parte do seu tempo à ONG Justiça Ambiental. “É uma espécie de advogada do povo, levanta as questões ambientais e sociais.” Em Tete, para minerar, a Vale desalojou os habitantes e realojou-os a 40 quilómetros. “Construíram onde não podiam, uma área de terra seca, sem agricultura, sem cuidados de saúde nem escolas.”

4. Mas obras ou projectos gigantes como este espalham-se pelo país. A madeira nobre está a ser arrasada, levada. Em Nacala, um porto estratégico, um pouco a norte da Ilha de Moçambique, onde os EUA estão interessados em fazer uma base de submarinos, há um grande recife de coral a ser desmantelado. E o extremo-norte, Cabo Delgado, que faz fronteira com a Tanzânia, tem sido notícia regular nos últimos tempos por causa de uns raides terroristas, supostamente de jihadistas que chegam às aldeias, cortam cabeças, queimam as casas. O norte de Moçambique é a parte mais islâmica do país. Correm duas versões sobre estes raides. A primeira é que os atacantes serão jovens que foram industriados em mesquitas externas e voltam como milícias jihadistas. A segunda é que estes ataques estão a ser organizados para espalhar o medo e afastar os habitantes locais, deixando o campo livre aos muitos interesses milionários na região, nomeadamente dos EUA: empresas de segurança, exploração de recursos naturais. As riquezas serão imensas. Já lá está a norte-americana Anadarko, pronta a captar aquela que é uma das maiores reservas de gás natural do mundo. Há quem ache que a verdade é uma combinação destas hipóteses, interesses poderosos usando como peões uns rapazes, que passam por jihadistas. Estranhos jihadistas que matam, destroem e somem, não controlam, não tomam poder.

Um dos planos próximos de Mauro Pinto é viajar até lá. Ver com os seus olhos.

5. Entretanto, em Maputo, a alternância de poder, ou a separação de poderes são conceitos especiais. A alternância continua a ser não entre partidos mas entre facções do Partido. E é o Partido que parece controlar o poder judicial, nomear reitores nas universidades, vigiar a imprensa. O nome d’O Partido quer dizer Frente de Libertação de Moçambique. Falta a revolução que o liberte dele mesmo.