1. Eu ia escrever sobre esse “retrocesso civilizacional”, atraso de vida, mesmo, que é o anunciado “Museu da Descoberta”. Mas acabo de passar algum tempo com o assunto no Facebook. E, portanto, enquanto recupero, decidi escrever sobre algo menos violento: a eutanásia. Como dizem alguns políticos nas entrevistas, obrigada por esta oportunidade de descansar um bocadinho, Partido Comunista Português (PCP).
Aliás, a relação entre os dois temas não é abstrusa. Creio que a última vez que me referi aqui ao PCP, foi justamente a propósito dos “descobrimentos” que, sem aspas, nem nenhum sinal de distância crítica, os comunistas propõem como tema, entre outros, para um futuro festival literário em Lisboa. Mas não foi só isso que me lembrou o CDS nessa estranha proposta cultural do PCP. Foi o tom de várias frases, entre a feira mediática e a pátria na lapela. Tantos escritores membros do PCP, no passado/no presente, o que achariam/acharão eles disto, perguntei-me? Até hoje pergunto. De repente, aquele partido que conhece tão bem, ou tem obrigação de conhecer, as lutas anti-coloniais, não se distinguia do seu oposto no espectro partidário. Talvez porque, na verdade, de repente não é de repente, e o seu oposto não é o seu oposto. Como a decisão sobre a eutanásia vem de novo mostrar.
Separados à nascença, unidos pela vida: PCP & CDS. A união de facto é linda, e quem sou eu para me meter na vossa intimidade. Da mesma forma, quem são vocês para se meterem na minha?
2. Para quem lê isto fora da lusa pátria, ou perdeu as notícias, um resumo. O Partido Comunista Português acaba de anunciar que votará contra os projectos de lei do PS, BE, PEV e PAN — basicamente, todo o espectro partidário, menos a sua ponta direita, CDS — que propõem a despenalização da morte assistida. E o PCP também não concorda com a realização de um referendo.
Com que argumentos, em nome de quê?
— De “uma concepção de vida profundamente humanista”.
— De “condições de vida dignas para todos”.
— Porque a “legalização da eutanásia não pode ser apresentada como matéria de opção ou reserva individual”.
— Porque “inscrever na lei o direito a matar ou a matar-se não é um sinal de progresso mas um passo no sentido do retrocesso civilizacional”.
— Porque “a Constituição consagra o direito à vida”.
— Porque “é responsabilidade do Estado assegurar e respeitar a vida humana”.
É por estas e por outras que alguém da direita conservadora está muito mais perto do PCP do que pensa, tal como alguém da esquerda conservadora está muito mais perto do CDS do que pensa. Estes conservadores estão muito perto uns dos outros em muitas coisas decisivas. Uma delas, a mais intrusiva, é a autonomia do indivíduo: PCP & CDS são contra.
3. Mal acabei de ler a decisão do PCP, caiu-me ao colo um artigo sobre como cuidados paliativos e eutanásia não se excluem. Dados de 2017 na Bélgica mostram que a eutanásia acontece mais “depois de os doentes terem acesso a cuidados paliativos com qualidade”. Ou seja, “num contexto de eutanásia legalizada, a eutanásia e os cuidados paliativos não surgem como práticas contraditórias”. Um dos autores da pesquisa, o sociólogo Joachim Cohen, atribui a aceitação crescente da eutanásia na Europa Ocidental à tolerância quanto à autonomia e à liberdade de escolha, e ao “declínio da religiosidade”.
Ora, a propósito de religiosidade, de braço dado com esse artigo vinha outro, sobre como oito líderes religiosos portugueses estão unidos contra a despenalização da morte assistida. “Católicos, evangélicos, judeus, muçulmanos, hindus, ortodoxos, budistas e adventistas pediram para ser recebidos por Marcelo Rebelo de Sousa”, e manifestaram-se “absolutamente convergentes” em relação à eutanásia, que consideram ser “um retrocesso civilizacional”.
Faltou lá essa nona religião que é o PCP.
O nome próprio do CDS é ser um partido cristão. Já o PCP é suspostamente um partido ateu, mas de facto bastante religioso no seu apego irracional ao dogma. E não só não tem havido declínio nesta religiosidade do PCP, como ela parece fortalecida à medida que o mundo pula e avança.
4. Gostaria de comentar os argumentos do PCP contra a eutanásia do estrito ponto de vista da minha futura morte:
— “Uma concepção de vida profundamente humanista”. Partilho (quem não?). E por isso mesmo quero ter direito a morrer, e a ser ajudada a morrer. A vida não é uma condenação. É um direito.
— “Condições de vida dignas para todos.” Partilho (quem não?). E defendo o direito de cada um a decidir onde e quando essas condições se tornam impossíveis para quem as vive.
— “A legalização da eutanásia não pode ser apresentada como matéria de opção ou reserva individual.” Ao contrário, só pode ser apresentada nesses termos. Se a vida é um direito de quem a vive, a morte é a última etapa desse direito.
— “Inscrever na lei o direito a matar ou a matar-se não é um sinal de progresso mas um passo no sentido do retrocesso civilizacional.” Difícil acreditar que isto tenha sido escrito em 2018 por um partido de esquerda. Mas lá está, em muitas coisas, antes de ser de esquerda o PCP é conservador. De novo: o direito a matar-se é uma consequência do direito à vida.
— “A Constituição consagra o direito à vida.” Partilho (quem não?). E o que é que isso tem a ver com a eutanásia? O direito à vida é essencial. A questão é que inclui, abrange, o direito a terminar com a vida.
— “É responsabilidade do Estado assegurar e respeitar a vida humana.” E o que é que isso tem a ver com a eutanásia? Se o Estado tem a responsabilidade de assegurar e respeitar a vida humana, tem a responsabilidade de não penalizar o direito à morte, que faz parte do direito à vida. E a responsabilidade de assegurar, sim, que a assistência na morte resulta sempre, exclusivamente, do desejo expresso de quem morre.
5. A vida é o mais precioso bem, até ao ponto em que se torna condenação. Não acredito que os seres vivos nasçam para serem/estarem condenados a algo, nem pelas circunstâncias, nem por um ente divino. O divino está dentro do humano até o humano decidir que não quer viver mais. Por outras palavras, quero ter o direito de morrer; e se não o conseguir fazer por mim, quero ter o direito a pedir que me matem; e quando isso não for possível, porque me tornei um vegetal, é meu desejo expresso que acabem comigo.
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