Desde o deputado galês que elogia Boris Johnson ao deputado escocês a afirmar, pela milésima vez, que os escoceses querem ficar na União Europeia, passando pelos norte-irlandeses e pelos deputados das várias regiões inglesas, a variedade linguística é impressionante.
Por cá, também aparece no Parlamento uma ou outra inflexão menos lisboeta, mas não é habitual ouvir um bom e sonoro sotaque alentejano, logo rebatido por uma voz transmontana, seguida por saborosas consoantes beirãs. Os deputados portugueses não fogem muito ao sotaque-padrão — há dias em que, linguisticamente, não se nota grande diferença entre o Parlamento e a Assembleia Municipal de Lisboa...
Porquê esta diferença nos hábitos linguísticos dos dois países?
Para compreender o festival sonoro no Parlamento britânico, temos de nos lembrar de três factos.
Em primeiro lugar, o sotaque britânico mais conhecido — a Received Pronunciation, o sotaque que associamos à rainha — é típico de uma franja muito limitada da população do Sul de Inglaterra. Quando saímos da Inglaterra dos palácios — ou da Inglaterra muito snob que imaginamos por cá —, encontramos uma tremenda variedade linguística, ainda maior se considerarmos as outras nações que compõem o Reino Unido.
Depois, se é verdade que esse sotaque tem um prestígio que ultrapassa as próprias fronteiras do país, esse prestígio é contrabalançado pelo prestígio dos outros sotaques nas regiões em que são falados. É aquilo a que os sociolinguistas chamam prestígio encoberto. Um trabalhador de Liverpool seria impiedosamente gozado se tentasse falar como a rainha. Um professor de Manchester não sente necessidade de imitar um londrino. Um político escocês usa sem medo e sem pedir desculpa o sotaque escocês.
Ora, este prestígio encoberto (um fenómeno de todas as línguas) alia-se, no Reino Unido, a outro facto: ao contrário do que acontece por cá, os deputados britânicos são eleitos de forma individual e representam, antes de mais, os eleitores do seu círculo — e só depois o partido. Um deputado, quando discursa, está a falar para os colegas, mas a pensar nos seus eleitores, que sabem bem quem os representa. Não há nenhum incentivo para imitar sotaques: cada um fala como costuma e os eleitores não só não se importam, como estranhariam se fosse doutra maneira.
Para lá do Parlamento, é hoje possível ouvir uma maior variedade de sotaques na própria BBC — estamos já bem longe do tempo em que BBC English era sinónimo de Queen’s English. Note-se que todos estes sotaques são apenas isso: sotaques. Em geral, os deputados e os locutores da BBC usam o inglês-padrão no que toca à gramática e ao vocabulário (já na rua, a história é ainda mais complicada e interessante).
Ouvir todos estes sotaques no palco mais importante da política britânica ajuda-nos a perceber como o prestígio não está associado a uma maior qualidade linguística. Há grandes oradores no Parlamento britânico, muitos deles com sotaques que nós, pouco habituados a ouvir outros sons do inglês, temos dificuldade em compreender. Não: falar como se fala na nossa terra não é um problema — sei que isto parece óbvio para muitos, mas ainda é comum encontrar quem ache que falar bem é falar como na capital (seja ela qual for). Em Inglaterra, aliás, falar como na capital não é garantia de nada — há londrinos com vogais bem distintas das vogais da rainha.
A existência de tanta variedade é também prova (entre tantas) que a língua é mais do que um instrumento de comunicação: é também, de forma mais ou menos consciente, a expressão sonora da identidade de cada um — e, por trás das maneiras diferentes de falar, escondem-se histórias bem mais interessantes do que pensamos. No que toca ao inglês, poucos as contam tão bem como David Crystal — recomendo, para começar, o livro The Stories of English. Ficamos a perceber como o inglês é um bicho muito atrevido — e a nossa língua, já agora, não lhe fica atrás.
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens no blogue Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.
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