Até ao século XIX não havia substituto para o leite materno. Quando a mãe não tinha leite suficiente recorria-se a uma ama. Esta situação difícil – nem sempre havia uma ama disponível, ou a situação económica da mãe permitia contratá-la - mudou em 1865, quando o químico alemão Justus von Liebig, considerado o pai da química orgânica, inventou, patenteou e comercializou o primeiro leite substituto, vendido em forma líquida e depois em pó. Constituído por leite de vaca, trigo, malte e bicarbonato de potássio, faltava-lhe muitos componentes do leite materno, mas resolvia o problema. A industrialização levou ao surgimento de várias empresas que se diversificaram e evoluíram para multinacionais muito poderosas. A mais conhecida começou com a invenção do leite condensado, por Henri Nestlé, em 1867.

Lentamente, o leite em pó infantil começou a substituir o leite materno, acompanhando o desenvolvimento dos países industrializados. As fórmulas aperfeiçoaram-se, sempre a tentar aproximar-se do original humano e os médicos não viram problemas em aconselhar o substituto. Em 1929 foi lançado o leite de soja para crianças alérgicas a lacticínios. Na década de 1970, 75% dos bebés norte-americanos eram alimentados com leite em pó.

A Organização Mundial de Saúde determinou que os leites em pó eram confiáveis, mas nos países subdesenvolvidos surgiu um problema: devido a problemas sanitários, a manipulação do pó é mais perigosa do que o consumo do leite materno, que vai directamente do produtor ao consumidor sem passar por recipientes nem sempre muito limpos. Além disso, novas pesquisas dietéticas consideraram que, por melhor que seja, o leite fabricado não tem as mesmas qualidades imunológicas que o maternal. Como resultado destes estudos, a própria OMS determinou que o consumo deste leite industrial não deveria ser incentivado e que era conveniente acabar com as promoções entretanto utilizadas pelos fabricantes, como por exemplo oferecer amostras às mães, oferecer benefícios vários ao corpo clínico e fazer publicidade que levasse a crer que era melhor não amamentar e usar biberão. Em 1981, a promoção dos leites infantis em pó estava completamente proibida em 84 países.

Estas restrições não interessavam aos grandes produtores. (A lista dos maiores fabricantes mundiais inclui nomes sonantes como Mead Johnson, Nestlé, Danone, Abbott, Friesland e Heinz.) Entretanto, uma mudança de mentalidade nos países mais desenvolvidos levou a que a amamentação voltasse a ser preferida pelos médicos e pelas mães, diminuindo as vendas. A solução encontrada pelos produtores foi expandirem-se para os mercados mais subdesenvolvidos – precisamente aqueles em que a falta de higiene tornava o uso do pó problemático.

Os Estados Unidos sempre apoiaram os interesses das suas grandes empresas no estrangeiro através de iniciativas dos vários departamentos estatais. Essa prática foi reduzida há anos, mas agora, com o Governo de Trump, voltou a fazer parte dos seus procedimentos internacionais. Assim, na reunião da OMS em Genebra deste ano, os representantes norte-americanos propuseram algumas subtis mudanças nas resoluções da organização (que não são vinculativas) referentes ao leite. Especificamente, queriam retirar dos textos o incentivo para que os governos “protejam, promovam e apoiem a amamentação” e outra passagem sobre a restrição de produtos alimentares pouco saudáveis. Quando viram que a sua proposta não tinha maioria, fizeram pressão sobre o Equador para que votasse alinhado com o voto americano, ameaçando retirar vários apoios noutras áreas.

“1,000 Days”, uma ONG que se dedica a questões de bem estar e saúde de mulheres grávidas, chamou a atenção para o facto de que os técnicos do Departamento de Saúde e Serviços Humanos se tinham reunido duas semanas antes com representantes das indústrias alimentares. Segundo a ONG, os produtores de alimentos foram particularmente enfáticos para que certas restrições da OMS fossem levantadas. Oficialmente, os norte-americanos disseram que não estavam de maneira nenhuma a querer incentivar o leite artificial, mas sim “a dar maior possibilidade às mães de escolher”. Um representante da Nestlé, uma das empresas presentes na reunião com o Departamento de Saúde, disse à revista “Atlantic”: “Acreditamos que para aumentar substancialmente a amamentação e promover dietas saudáveis, as normas da OMS deviam considerar outras medidas para lá de se limitar a recomendar restrições adicionais à promoção da alimentação infantil comercial.” Coincidentemente, a 9 de Julho o Presidente Trump dedicou um dos seus famosos tweets ao assunto, repetindo o mesmo argumento da Nestlé: há que dar às mães mais opções de alimentação dos bebés.

Esta campanha das indústrias alimentares não é de agora. Há décadas que os seus representantes lutam por cada vírgula dos regulamentos e propostas das organizações de saúde, especialmente da OMS, para que os seus produtos não sejam considerados inferiores aos naturais. A diferença é que agora têm um Governo disposto a ajudá-las e, até, a usar pressões diplomáticas internacionais para servir os seus interesses.

A nível clínico, os pediatras têm várias teorias, mas essencialmente consideram que o melhor para os primeiros seis meses de vida é o leite materno. Nos países desenvolvidos, as mães escolhem frequentemente alternar o seu leite com o biberão porque ficam menos dependentes do horário de refeição dos bebés, mas, nos países subdesenvolvidos, as mães são levadas a pensar que o leite em pó é melhor do que o leite humano e depois diluem-no em água para economizar. A água nem sempre é limpa e os recipientes nem sempre estão esterilizados.

Já na decisão de 1981, os Estados Unidos foram os únicos a votar contra a resolução de proibir a promoção de leite infantil em pó numa votação de 180 votos contra um.

Desta vez, quem dirigiu o movimento contra as subtis modificações da resolução foi a Federação Russa. O facto é que os países onde é proibido promover leite “artificial”, como o Brasil, têm percentagens mais altas de amamentação, enquanto nos países onde não é, como os Estados Unidos, as percentagens são mais baixas.

Em 2004 o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (Governo George W. Bush) chegou a planear uma campanha para incentivar a amamentação, mas, segundo o “Washington Post”, o lóbi das empresas conseguiu que fosse cancelada. A título de exemplo, só a Abbot nesse ano gastou 790 mil dólares em lóbi.

Afinal, o que é o leite?

Outra guerra, talvez menos importante para a saúde dos bebés, mas significativa dos interesses comerciais conflitantes, tem a ver com uma coisa tão simples como a definição de “leite”. Os produtores de leite de vaca queixam-se de que há uma série de produtos que se rotulam como “leite” mas na realidade não são, como o “leite de amêndoa”, ou o “leite de soja”. Segundo eles, até mesmo o leite de cabra não pode ser chamado simplesmente de “leite”. As indústrias destes produtos, normalmente relacionadas com certos tipos de dietas, como a vegan, ou com alimentos biológicos, contrapõem que a definição do produto não pode ser tão restrita. Não se trata de uma disputa académica ou filosófica: estão em causa milhões de dólares ou de euros.

Nos Estados Unidos, O Departamento de Alimentação e Produtos Farmacêuticos, está no meio desta guerra e pensa-se que em breve irá definir o que pode ser chamado de leite. De um lado está a Associação de Produtores de Lacticínios, do outro a Associação de Alimentos Vegetais. Independentemente da decisão, um facto iniludível é que o consumo de leite animal tem vindo a diminuir nos últimos anos, tanto nos Estados Unidos como na Europa, enquanto os leites vegetais tem aumentado as vendas.

O sector dos lacticínios, que traz à mente uma pacífica vaquinha a pastar no prado, é na verdade uma terra queimada onde se defrontam cientistas e produtores. E, numa discussão que tem várias frentes, nem sempre a saúde dos consumidores é o objeto principal desta disputa.