1. Já foi tarde, e a demora teve prejuízos ainda por avaliar, para o Bloco de Esquerda, e para mais esquerda que essa. Mas na segunda-feira Ricardo Robles anunciou finalmente a sua renúncia a vereador na Câmara de Lisboa. Era a única decisão possível, para Robles, para o Bloco, para quem alguma vez votou nos bloquistas, para a esquerda em geral.
E não para fazer o jeito aos variados oportunistas à direita que surfaram esta onda num frenesim, confundindo moralismo, ética e ilegalidade. Pelo contrário, a renúncia de Robles é a melhor resposta a esse oportunismo. A melhor forma de dizer: a confusão é vossa, aqui não há confusão.
2. Porque é que a renúncia de Robles era a única decisão possível, do ponto de vista de quem já votou no Bloco, e da esquerda em geral? Porque há uma fortíssima, insanável contradição entre o processo imobiliário de Robles e a campanha que ele fez para a Câmara de Lisboa. Essa contradição é da ordem da ética, não da ilegalidade. De tudo o que foi publicamente escrutinado, parece claro que Robles não cometeu qualquer ilegalidade. E justamente por ser uma fortíssima, insanável contradição ética é que a esquerda, e sobretudo quem vota no Bloco, só podia esperar, desejar e aplaudir a renúncia. Em suma, porque isso é parte essencial do que a distingue, ou deve distinguir, da politiquice barata, do chico-espertismo, para não falar de ilegalidade contumaz.
Mas percebe-se que os oportunistas à direita pipoquem com a menor oportunidade de apontar o dedo financeiro à esquerda. É que, de facto, não têm muitas oportunidades de o fazer. Os crimes financeiros de políticos são quase um exclusivo de PS, PSD e CDS, a tal ponto que já dificilmente ocorreria uma demissão por razões éticas, dentro de algum destes partidos. Se um partido está a braços com casos de corrupção activa e passiva, branqueamento de capitais, fraude fiscal, abuso de poder, peculato de uso, burla, extorsão ou falsificação de documentos, como tem acontecido com PS ou PSD ou CDS, e se os prevaricadores continuam a mentir até depois da cadeia, como imaginar que se demitam quando nem sequer cometem ilegalidades?
O PSD “exigir” a demissão de Robles é patético. Mas o Bloco, e outra esquerda, não podem deixar de fazer o que há a fazer por o PSD achar que retira dividendos disso. Primeiro, não retira. E segundo, era o que faltava. A esquerda não pode ficar refém da direita a esse ponto. O patético do PSD fica com o PSD.
3. A esquerda tem de morar num barraco e comer latas de atum? O Bloco foi moralista e depois provou do seu veneno? Não, e não, são as minhas respostas. Porque 1) Ninguém tem de morar num barraco e comer latas de atum (que não é tão barato assim, além de que é um animal, não dá para os que forem vegetarianos) 2) Não acho que o ponto, neste caso, seja se o Bloco foi ou não moralista na sua campanha contra a especulação e gentrificação de Lisboa.
A fortíssima, insanável contradição entre o processo imobiliário de Robles e a campanha que ele fez para a Câmara de Lisboa não está no facto de Robles ter comprado e tentado vender um prédio, ou ser proprietário. Está nas circunstâncias, que se foram revelando cada vez mais problemáticas. Robles comprou com a irmã um prédio por 347 mil euros, pediu 650 mil para o recuperar, reconverteu-o em mini-apartamentos entre 25 e 41m2, tentou vendê-lo por 5,7 milhões de euros, tentou alugá-lo para alojamento temporário. Ora, negócios como este são parte do que está a transformar Lisboa de forma selvagem, e Robles foi eleito contra isso, prometendo lutar contra isso. São a única parte? Não. Há outros responsáveis: o Estado é responsável. A Segurança Social que vendeu o prédio assim. A câmara, o governo, que deveriam estar a regular o mercado, a intervir para que a situação não fosse o desastre que já é.
Mas o cidadão Robles, que se tornou depois o candidato Robles, disse o que disse em campanha, e continuou a dizer depois de ser vereador, e portanto não podia, absolutamente não podia, estar a conduzir um processo assim, em paralelo. Não é ilegal, é não ético. Uma contradição clara com o que prometeu aos seus eleitores. Sim, ele explicou que quando compraram o prédio era para a irmã que morava fora de Portugal vir a habitar, mas a irmã acabou por decidir não voltar a Portugal, os planos foram alterados, tinham de recuperar as despesas, o investimento, etc. Sublinhou ter recuperado património, não ter despejado quem lá morava, mais, ter feito um contrato que não havia, por vários anos e 170 euros de renda. Ok. Nada disto tira o essencial. Tentou vender durante meses por 5,7 milhões, desistiu por não ter conseguido, e transformou o prédio em micro apartamentos ideais para alojamento temporário, tudo aquilo que Lisboa não precisa, e contra o qual ele disse que ia lutar.
4. Não votei em Ricardo Robles nessa renhida eleição autárquica (a minha última como lisboeta). Ponderei fazê-lo, até porque o Bloco é o partido em que mais votei desde que há Bloco (embora não sempre). Mas Robles não me convenceu (como outras figuras, e outros momentos, do Bloco não me convenceram). Não vi nele, por exemplo, a força genuína que me levou a votar em Marisa Matias.
Isto dito, conheço muita gente que votou nele, e alguns amigos têm óptima impressão do trabalho que fez (não segui o bastante para avaliar, e moro há quase um ano num concelho vizinho de Lisboa).
Por tudo isso também — e não apesar disto — me surpreende o que aconteceu. Como é possível que Ricardo Robles estivesse a conduzir aquele processo, naquelas circunstâncias? Sabendo do que foi a luta política nessa eleição; sabendo da confiança que tanta gente de esquerda (até gente que deixara de votar Bloco) colocou nele; sabendo a que ponto o Bloco se empenhara contra a especulação e a gentrificação; tendo depois feito um trabalho importante noutras áreas (educação), como foi possível prolongar este longo erro? Quanto é que Ricardo Robles não disse ao Bloco, aos que tinham de pôr as mãos no fogo por ele? É uma contradição ética, mas também uma irresponsabilidade política espantosa.
5. Então aqui entramos noutro ponto. A forma como alguma esquerda saltou em defesa de Ricardo Robles, a vítima. Vítima dele próprio, sem dúvida. Dramaticamente vítima dele próprio. Tenho pena, como toda a gente de esquerda terá, se as boas capacidades dele não vão ser aproveitadas na política, porque não há assim tantas boas capacidades disponíveis para a entrega pública. Mas a contradição ética e a irresponsabilidade política do que aconteceu são tão surpreendentes que não era possível parte da esquerda fazer dele um mártir. O que é que Ricardo Robles tinha na cabeça quando começou a circular aquele anúncio de 5,7 milhões, ou quando micro-dividiu os apartamentos? O que é que não disse, e porquê, ao Bloco?
A sua primeira resposta a esta polémica foi: “Considero que procedi de forma exemplar. Não há nada de reprovável na minha conduta.” Como é possível?
6. E como é possível que alguns elementos do Bloco o tenham defendido de forma tão veemente, e contundente para as notícias sobre o processo, antes de examinarem os dados? Sabiam de tudo e estavam numa ilusão suicidária? Não sabiam e falaram cedo de mais? Visto de fora — aqui nos arredores da capital, e das notícias —, foi penoso. Porque é que o Bloco estava a cometer aquele hara-kiri? E porque é que alguma esquerda, não militante do Bloco, assentava baterias contra os oportunistas à direita em vez de cobrar o que era preciso cobrar a quem foi eleito?
É ao Bloco de Esquerda, antes de mais, que interessa um Bloco de Esquerda melhor. E com certeza interessará o que deste caso se possa retirar para ser melhor. Não parecer. Ser mesmo.
7. Creio que nunca escrevi uma linha aqui sobre Sócrates, não me interessa perder energia com casos perdidos. Esse nível, essa esfera, a dos sociopatas, a dos burlões de gravata, politiqueiros, banqueiros, presidentes de empresas, não tem nada a ver com este caso. Mas o tempo que o Bloco demorou a reagir, o tempo que levou a renúncia de Robles, permitiu que se multiplicasse a ideia de que os políticos são todos iguais, tudo a mesma corja, e é bem feito para o Bloco que tem a mania que é diferente.
Enquanto eu continuar a votar, e a acreditar em eleições (o que é uma batalha diária), bem gostaria de votar em políticos que tenham a mania que são diferentes porque, sim, são diferentes. Moralismo não é moralidade ou ética, será mesmo o oposto. Não estou nada interessada em moralismo, mas interessa-me a ética. Entre os muitos comentários a este caso, alguém dizia que o problema de Robles é que não basta parecer de esquerda, há que ser de esquerda. Também acho que o problema deste caso é o inverso daquele ditado, historicamente idiota, de que à mulher de César não basta ser séria, tem de o parecer.
A verosimilhança não me interessa na literatura, na vida ou na política. O Bloco pode ser irritante por parecer ter a mania, mas problema maior para mim é quando não é o que parece. E isto não se aplica só a Ricardo Robles, mas a todas as aparências de progressismo, de feminismo, de anti-homofobia, de anti-racismo, que depois não se traduzem em acção, ou são contrariadas pela acção. Alguém que se diz feminista ou gay e age como macho das cavernas é só um macho das cavernas. Alguém que se diz anti-racista mas desvaloriza a relação do passado com o quotidiano agora, pode parar já, e começar a ver e ouvir.
8. Não só acredito como espero que Ricardo Robles tenha deixado outras heranças políticas, foi para isso que foi eleito. E fez bem ao reconhecer finalmente isto na segunda-feira: “Uma opção privada, forçada por constrangimentos familiares que expliquei e no respeito pelas regras legais, revelou-se um problema político real e criou um enorme constrangimento à minha intervenção como vereador.” Também Catarina Martins fez bem em admitir “um erro de análise, que eu assumo, porque a contradição criada era um entrave demasiado grande para permanecer”.
Sim, e sim. Demorou mas veio. E isso já está do lado da diferença.
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