Esta pergunta impôs-se-me depois de, hoje, a grande maioria dos jornais portugueses ter dado destaque ao envenenamento dum ex-espião russo em Inglaterra. Estes casos de envenenamento encerram um contra-senso que, para todos os efeitos, me faz lembrar o paradoxo do primeiro parágrafo (o da Rússia fraca e forte ao mesmo tempo). É que os envenenamentos são tentativas de assassinato simultaneamente silenciosas e barulhentas: literalmente silenciosas no processo (menos espalhafatosas que balas ou bombas), mas também barulhentas já que conferem uma espécie de assinatura ao crime, o que torna mais ruidosas as notícias. Barulhentas também pelos audíveis rumores que implicam a Rússia nestes atentados - sempre rubricados com alfabeto cirílico e tinta peçonhenta.
Não pretendo ser desonesto nem lançar qualquer boato. Aliás, há muito que ele está lançado, e há muito que a palavra “boato” não contempla com justiça os indícios tóxicos destes envenenamentos. Digamos que de Moscovo também não chegam propriamente os mais apaixonados pregões de inocência; em cada “Não fomos nós” percebe-se mais uma desafiadora declaração de impunidade que uma refutação de culpa. É a tal Rússia enfraquecida internamente, mas portentosa nas meias palavras e no peito cheio com que afronta o Ocidente.
O envolvimento russo não está circunspecto a estas desconfianças, mas alimenta-se delas. É na desconfiança que reside o lado barulhento, é lá que sobressai a assinatura. Quando nos acham culpados, mas não nos podem tocar, qualquer declaração se torna num vigoroso dedo do meio esticado para o mundo. Por isso, o Kremlin ao fazer alegações ténues de inocência não produz um efeito nada ténue nem inocente – revela antes uma ardilosa demonstração de força, uma propaganda ainda mais eficaz que as fotografias do torso robusto de Putin, ou as proezas do presidente russo em combates de judo. Mesmo que todas as evidências não passassem de rumores, dificilmente haveria gossip-girl mais favorecida do que o velho Vladimir P.
De novo: o envolvimento russo não está circunspecto à desconfiança subjectiva nem aos rumores. Há evidências demasiado circunstanciais para que se confundam com simples boatos. Mesmo os fanboys da Rússia que nos rodeiam têm alguma dificuldade em fazer o costume: classificar qualquer suspeita como “má-vontade”, apelidar-nos de “fantoches dos americanos”, ou afirmar que ainda estamos debaixo dum velho hipnotismo capitalista, que ainda vemos os eslavos como eternos vilões nos filmes da guerra-fria. Até para a claque que torce pelos russos é difícil ignorar o padrão ou - como tenho estado a chamar-lhe - a assinatura.
De cabeça, consigo recordar um punhado de casos. Alexander Litvinenko (recordei-o de cabeça, mas tive que ir confirmar a grafia, confesso) será o mais famoso dos inimigos da Rússia assassinados com a rubrica venenosa. Há quase 12 anos, este desertor do FSB (substituto do KGB) sofreu uma morte lenta e agonizante num hospital londrino. Tinha sido envenenado com o raríssimo e potente Polónio-210, e isto numa altura em que Alexander era o mais altissonante crítico e acusador de Vladimir Putin – Putin a quem, aliás, Litvinenko ainda conseguiu atribuir as culpas do seu assassinato. Da dúplice Rússia - fraca e forte - chegou uma mensagem dúplice: “Não fomos nós que o assassinámos, seus caluniadores”, mas dito com o ar de “É isto que fazemos aos inimigos do Estado.”
Já a causa da morte de Yuri Shchekochikhin só nos canais oficiais é que não foi registada como envenenamento; fora deles a história terá sido outra. Desde o adoecimento repentino deste jornalista até ao rápido falecimento, tudo ficou muralhado e encapotado sob a alçada do FSB – exactamente os serviços secretos que andavam na mira das investigações e acusações de Yuri Schekochikhin. Perdoem-me o sarcástico festival de aspas que usarei para descrever o caso. É que a “doença fulminante” do jornalista surgiu “por coincidência” exactamente antes da viagem que ele tinha marcada para os EUA. Viagem que, “por coincidência” contemplava na agenda uma audiência com o FBI. Ainda “por coincidência”, a “doença” de Yuri teve os exactos sintomas que antecederam o falecimento de Litvinenko.
Com contornos demasiado semelhantes estão também as mortes de Lecha Islamov ou Roman Tsepov, e a este rol junta-se ainda o famoso envenenamento do ex-presidente ucrâniano Viktor Yuschenko - que sobreviveu para contar a história, mas também para contar as visíveis mazelas que o atentado lhe deixou na pele. E se nestas “coincidências” ainda não conseguimos vislumbrar a mesma assinatura, há que recordar outro caso que pode consolidar o padrão: o cerco que as forças-especiais russas fizeram ao Teatro Dubrovka em 2002, quando o edifício moscovita foi sequestrado por separatistas chechenos. Mais de uma centena de reféns morreu envenenada pela substância que as forças especiais bombearam para dentro do teatro - prova não só da obstinação implacável das autoridades, mas também do manuseio preferencial e descomplexado de armas tóxicas.
A rematar as evidências, e a amplificar os decibéis destas armas silenciosas, em 2006 Moscovo aprovou uma lei que concede aos seus agentes a permissão para assassinar extremistas fora das fronteiras do país. Já que “extremismo” não é um conceito fechado, e já que a semântica está à mercê dum golpe de judo, a culpabilidade russa nos casos que hoje enunciei passa do possível para o provável. E do provável passa para o descarado: a Rússia anda a apregoar ruidosamente o silêncio dos seus envenenamentos. Quando Putin afirma não estar implicado, só lhe falta voltar-se para a câmara e piscar o olho.
O país de que falo está doente, mas é um gigante doente. Um gigante doente e descarado. O problema é que a Rússia parece andar a concentrar esforços no agigantamento e não na cura das suas maleitas. O desejo expansionista é mais que territorial e não está confinado ao espaço que fora outrora soviético; a expansão russa verifica-se também no alargar duma teia corporativa corruptora, batoteira, e verifica-se nesta impunidade fanfarrona com que envenena (às vezes literalmente) o Ocidente. Um gigante doente não se expande, contamina.
Sinto pouca vontade de fazer uma demonização primária da Rússia. Por um lado, até creio que as ambições de Moscovo não distam assim tanto das ambições de qualquer nação poderosa. Mas há erros que arriscam tornar-se irreparáveis. O poder russo é autocrático e férreo, mas também permeável à corrupção (outro contra-senso). A maneira violenta como está a meter o pé no mundo, e a maneira frouxa como o mundo tem respondido, bem pode andar a queimar qualquer via diplomática no futuro. Conversar como?
Com a Coreia do Norte a mostrar-se mais timorata e dócil na cara das sanções, e com a China a tornar-se forte demais para que a cheguemos a contrariar ou sequer compreender, a Rússia pode estar destinada a retomar o estatuto de Inimigo Público nº1 – inimiga do resto do mundo, mas ainda mais dos seus cidadãos. A meterologia mistura-se com futurologia: prevê-se aquecimento global e guerra fria.
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