É a 3.ª crónica onde argumento que todos os Mundiais (pelo menos os do meu tempo de vida) foram os melhores de sempre. Nesta empreitada, já sabia de antemão que teria de louvar aquelas edições da competição em que a nossa selecção foi menos louvável, ou mesmo aquelas em que Portugal nem sequer se apurou para a fase final. Pronto para essa infelicidade, acabo por ter felicidade com o calendário: calhou escrever sobre o Campeonato do Mundo que me foi mais penoso exactamente nesta penosa semana pós-eliminação dos nossos rapazes. A tristeza de 2018 serve de auxiliar de memória para outra tristeza no passado. Refiro-me a 1998, ano de Mundial com um preâmbulo terrível mas que, ainda assim, vou recordar como melhor de sempre.
Esse doloroso impacto que a Copa de 98 na França me trouxe aconteceu um ano antes, e na Alemanha. Já tive oportunidade de escrever aqui sobre o que ocorreu em Berlim a 9 de Setembro de 1997. Até esse dia fatídico, pensava que nada me causaria um maior nó na garganta do que ver a minha mãe a chorar; contudo, as lágrimas do Rui Costa lançaram-me sérias dúvidas na hierarquia das angústias. O não apuramento português e a vilania do árbitro Marc Batta são uma memória enervante, mas nada se compara à tristeza a que o choro do Rui Costa me transporta.
Não evito a auto-citação sobre o encanto invulgar do n.º 10 português: “À beleza do futebol de Costa juntava-se a subtileza, essa característica que nos grava na retina o que a retina mal registou. Muitas vezes já a bola estava no outro lado do campo quando conseguíamos processar a graciosidade do que acabáramos de assistir. Em jogadores contemporâneos, como Figo ou Zidane (só para recordar dois dos mais belos de sempre), cada finta, cada passe, cada livre, eram denunciados pelo tecnicismo óbvio; eles tomavam conta da bola e, com ela, do adversário. Em Costa era como se a beleza tomasse conta do executante, e não fosse um homem a brilhar no jogo, mas fosse a oportunidade para o jogo brilhar. A classe era superior ao génio, e não há nada mais genial que isso.”
O Campeonato do Mundo de 98 viu-se, portanto, tragicamente apartado de um jogador que elevava o jogo mais do que se elevava a si próprio. Ainda assim, foi um Mundial rico em jogadores elevados. Para termos ideia, este campeonato na França colocou na final, e em oposição, dois dos futebolistas que mais marcaram a transição de século, e seguramente dois que estarão numa curta lista dos melhores de todos os tempos: Ronaldo (o Fenómeno) e Zinedine Zidane.
Em 2000, enquanto militava no Inter de Milão, Ronaldo teria uma grave lesão no joelho que o condenaria a ser “apenas” um grande avançado até ao fim da carreira. Antes desse episódio ele era qualquer coisa mais: inacreditável, incomparável, um fenómeno, “o” Fenómeno. Surgia, portanto, como a estrela maior do Brasil e até do mundo naquele ano de 1998. Mas a estrela nem sempre cintilou, e até se eclipsou por momentos: durante o Mundial, Ronaldo sofreu uma lesão e originou polémica ao desaparecer temporariamente da convocatória brasileira para a final. Regressou em cima da hora num volte-face que até hoje confere certo mistério a esse fantástico campeonato. E regressou para se ver derrotado por 3-0 pela equipa gaulesa - que em casa, e a 2 dias da celebração da Tomada da Bastilha, ganhava o seu primeiro troféu mundial e lançava-se como a grande potência futebolística daquele período (Portugal viria prová-lo amargamente no Euro 2000).
Zidane – que fez pelos carecas o que Adrien Brody fez pelos narigudos – marcou dois dos golos da final e esteve em grande nível durante toda a competição. Mas este franco-argelino, um dos atletas que maior prazer futebolístico me proporcionou em toda a vida, na minha modesta opinião não foi sequer uma das figuras mais proeminentes daquele torneio. Vieri, Davids, Desailly, Bergkamp (a recepção de bola e consequente golo contra a Argentina vão sobreviver à destruição do mundo), Suker ou Thuram (daqueles defesas que nos fazem apaixonar por defesas daqueles) são nomes cuja prestação brilhante ofusca os pés (e a carequita santo-antonina) de Zidane nas recordações do Mundial.
Por cá, mais do que modernidade ou contemporaneidade, o ano de 98 trouxe aos cinzentões portugueses um agradável senso de futuro. Nós, que nos deliciávamos a passear pelo amanhã nas ruas da Expo lisboeta, talvez tenhamos usado a temática dos oceanos para diluir as lágrimas de Rui Costa. É que não consigo dissociar o Mundial de França desse sentimento esperançoso de fim de século. De todos os campeonatos de que tenho falado nestas semanas, este é o primeiro que não me parece “do passado” – e isto terá mais que ver com as características desse torneio do que com as características da minha experiência e do meu entendimento.
Não me recordo de um único pormenor rupestre ou tacanho relativamente ao França 98. Estádios luminosos, equipas luminosas, grandes golos, grandes jogadores, um enredo de nos colar à cadeira, um anfitrião que deslumbrou com mérito inquestionável. O futuro sentiu-se ali, e parecia perdurar - ainda que os mundiais dos presentes vindouros nem sempre tenham acompanhado tão digníssimo enlevo de porvires.
(continua)
Golos, de 98 para sempre:
Golaço de Ilie contra a Colômbia, após passe de calcanhar do “Maradona dos Cárpatos” Hagi. Recordar que, em 98, toda a equipa da Roménia podia figurar na primeira parte de um anúncio do Restaurador Olex.
Sand, contra a Nigéria, a coroar a cabeça de Taribo West com algo mais escandaloso do que o seu penteado.
Sunday Oliseh, contra a Espanha, a proporcionar um balúrdio em royalties a quem detém os direitos de autor da expressão “remate do meio da rua”.
O jovem Michael Owen, contra a Argentina, a passe do jovem Beckham. Os ingleses inventaram o futebol, mas em 98 quiserem acrescentar uma adenda de espectacularidade à patente.
Bergkamp, contra a Argentina. O passe longo de Frank de Boer é fantástico. A recepção de Dennis Bergkamp é matéria de lenda. A finta é notável. O remate é soberbo. Mas o que dizer do relato holandês?
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