Socorro os meus filhos leram três linhas inconvenientes, pornográficas, quem sabe?, talvez perversas. Este parece ser o grito inflamado de alguns pais face ao livro que alunos do oitavo ano do liceu Pedro Nunes leram por sugestão do professor. Pouco importa para o caso que o livro de Valter Hugo Mãe conte uma determinada história, contenha em si uma mensagem de bondade indiscutível (quem leu "O nosso reino" sabe do que estou a falar). O que importa mesmo é fazer de três frases fora do contexto uma polémica de tal ordem que está tudo em causa: o livro, o autor, toda a obra do autor.

Valter Hugo Mãe é um dos nossos grandes autores, reconhecido dentro e fora de portas. O livro estava nas listas de livros recomendados pelo Plano Nacional de Leitura para o oitavo e nono ano. O director do dito Plano já veio dizer que há um erro e que passará a estar apenas como sugestão para os alunos do secundário. Qual terá sido a razão para que "O nosso reino" fosse recomendado pelo professor? Talvez tenha visto o mesmo que eu vi, mas não terá tido em conta os alunos e os pais dos mesmos.

É preciso respeitar os alunos e os pais, está fora de questão, é obrigatório. Dito isto, interrogo-me se os miúdos do oitava e do nono ano não viram já na televisão, cinema (olá Guerra dos Tronos?!) cenas sexualmente explícitas, violência entre homens e mulheres, e sabe-se lá que mais nesse mundo cruel e democrático a que chamamos internet.

Quando eu tinha 13 anos li a Vida de Christiane F. , não sei se recordam desse fenómeno literário. Li na cama, à noite, com lanterna na mão. O livro é duro - ainda hoje - e fala-se de sexo (nomeadamente sexo oral). O livro relata um mundo de droga e afins e eu lembro-me de ter ficado impressionada com o que pode acontecer a alguém que se deixe levar assim. Não fiquei chocada com o resto.

O livro de Valter Hugo Mãe é o relato de uma criança de oito anos e as suas interrogações, até com Deus, a sua perplexidade face ao mundo. Três linhas que invocam uma prática sexual não são exemplo do que é o livro. Os miúdos hoje não são os miúdos de ontem e têm informação que os pais não imaginam.

A única vantagem deste episódio é que conheço uns miúdos que nunca leram Valter Hugo Mãe e agora vão ler. O autor escreveu no Facebook:"Acho muito bem que os pais que considerem os seus filhos imaturos para lerem determinadas obras os orientem noutras leituras. Como acho muito bem que os pais que reconheçam maturidade aos seus filhos os acompanhem em leituras desafiantes, no sentido de verdadeiramente esperar algo dos jovens que não seja apenas fútil e sempre adiado. Sou a favor de não se tratar os jovens como estúpidos. Falta-lhes informação, mas a grandeza e a complexidade humanas estão plenamente contidas em alguém de 14 anos de idade. Importa saber se queremos fazer de conta que existem crianças com essa idade ou se preferimos atentar no esplendor do aparecimento de um ser mais pleno, perto de estar inteiro. Seja como for, o que me compete dizer é que o meu livro não é um torpe discurso. É, muito ao contrário, uma exposição enorme de ternura. Para não o perceber basta não ler."

Linchamentos na praça pública imediatista e a quente dão nisto. A literatura reflecte a vida. O sexo faz parte da vida.