Supostamente o Dia dos Namorados é só um grande esquema capitalista, só outra data para mais um saque anual de incautos cidadãos. Há quem queira explicar esta artimanha comercial com a mesma tenacidade com que se explicam as impossibilidades de aviões derrubarem Twin Towers. Nisto das conspirações, até dou mais crédito às canas de pesca de Cupido que aos inside jobs americanos, mas no fundo nada me importa. Não vou escrever contra o Dia de S. Valentim, também não vou escrever a favor, e a prova da indiferença passa pela data em que redijo este texto: nem o faço a 14 de Fevereiro, nem sequer uma semana certa depois, faço-o nesta altura aleatória em que o calendário confirma a minha postura blasé sobre o assunto.
Então, para quê puxar o tópico? Porque quero provar que não sou feito de pedra. Há precisamente 8 dias, num talk-show televisivo onde fui convidado, perguntaram-me qual a importância que eu dava ao Dia dos Namorados. A prontidão com que respondi “Nenhuma” fez com que, na ponta oposta do nosso sofá, o semblante de outra convidada se carregasse. Para ser exacto, não foi a expressão dela que denunciou tristeza, foi a súbita inexpressão. Percebi que se encheu de pena dos meus entes queridos, pena de mim, pena da minha geração. E é esse aparente desprendimento de assuntos românticos que venho aqui contestar e colmatar.
A minha redenção far-se-á através duma canção. Vou usar este espaço de opinião para partilhar aquela música que me costuma vir à cabeça quando o desafio é “canção mais romântica de sempre”. Não entendam o “vir à cabeça” como um exercício instantâneo de pouca reflexão; para ser sincero (e para contrariar a figura empedernida que transpareci naquele talk-show) sou um entusiasta e um estudioso de love songs. Como o amor é a temática mais banalizada no panorama da música não erudita, e como redunda quase sempre nas mesmas fórmulas e lugares-comuns, o amor é também o terreno onde o génio, a originalidade ou a sinceridade se costumam destacar da mesmice – é aqui que o entusiasmo e o estudo entram em cena. Conheço de tudo, desde a palavrosidade poética leonardcoheniana - com a culpa, o desejo, a saudade, a cerimónia – até ao lamechismo eficiente das grandes carpideiras country. Contudo, a canção “que me costuma vir à cabeça” é um ignorado tema de 1 minuto e meio. Não tem nome de pessoa amada, nem título sentimentaloide. Chama-se “Johnsburg, Illinois”, e foi lançada pelo Tom Waits em 1983.
A canção é parcimoniosa na duração, nos instrumentos, na interpretação. Contrabaixo, piano e a voz - voz sem a habitual histrionia rosnada do Waits. Reza assim a letra, nesta minha tradução rápida:
Ela é o meu único amor verdadeiro.
Ela é tudo aquilo em que eu penso.
Veja aqui na minha carteira... é ela.
Ela cresceu ali numa quinta.
Há um sítio no meu braço onde eu escrevi o nome dela junto ao meu.
Sabe, eu simplesmente não consigo viver sem ela
E eu também sou o único rapaz dela.
E ela cresceu ali para os lados do condado de McHenry
Em Johnsburg, no Illinois.
Creio que as primeira coisas que me arrebataram na letra da canção foram o tom coloquial e o destinatário do discurso. Esta música é uma ode à mulher amada, mas sem a extravagância poética das odes, e sem a mulher amada como receptora directa do discurso. A simplicidade genial parte desta novidade: Waits quase parece abordar um desconhecido; fala-nos como se fôssemos alguém que casualmente se sentou ao lado dele na sala de espera do dentista, por exemplo. É na falta de contenção dessa abordagem que reside o tesouro romântico - o amor é tão forte que o cantor não consegue calar-se. Tão forte que ele se marimba para as inconveniências e desata a partilhar corriqueirices preciosas. Mostra-nos a fotografia da amada que tem na carteira, refere a tatuagem que fez com o nome dela, entra até em pormenores biográficos e geográficos sobre essa adorada desconhecida. A boca fala daquilo que está cheio o coração, e a paixão deste tresloucado é duma singeleza sublime.
O remate enternecedor da canção já estava prenunciado no título. Este tema de Waits (incluído no álbum notável “Swardfishthrombones”) é dedicado à sua esposa Kathleen Brennan mas, fugindo ao óbvio e ao rotineiro, a canção não tem por título o nome da mulher, nem tampouco esse nome é citado em qualquer verso. Em vez disso, Waits dedica a canção à procedência; remete a homenagem para o lugar onde Kathleen nasceu, e fá-lo embevecido. É como quem se ajoelha e beija o chão de terra santa.
A partir desta leitura, o romantismo da canção ainda se torna mais singular, e há novos factores que aqui despontam: a gratidão e a celebração. Waits não se prende em muitas descrições da sua amada, mas celebra-a no braço, na carteira, e na dívida de gratidão que tem para com o lugar que a “produziu”. É comum um apaixonado estar fora de si mas, neste caso, o “fora de si” é no sentido duma belíssima submissão de ego. Ele está nela. Ela importa mais do que ele; importa tanto que até o sítio onde nasceu precisa de ser celebrado.
Afinal, 1 minuto e meio de canção é suficiente para aquecer o coração. Afinal, o romantismo não tem de ser expresso em léxico pegajoso, nem em poesia altaneira. Afinal, a loucura amorosa não precisa afigurar-se dramática, nem destrutiva. Estou convencido: a próxima vez que estiver num sofá de talk show, ou numa sala de espera de dentista, desejar-vos-ei um bom Dia de São Valentim.
Hiperligações
Já que hoje me permiti uma rara exposição ao romantismo, permito-me uma ainda mais rara exposição à auto-citação.
1º - Aqui pelo meio estão recomendações de canções românticas que fiz há alguns anos. A meu ver, a lista ainda está a valer.
2º - No fim do ano passado dediquei algumas palavras ao Conan Osiris (segunda parte do texto) e, agora com as reacções iradas que a sua prestação no Festival da Canção gerou, apercebo-me que aquilo que escrevi nunca fez tanto sentido e, simultaneamente, tão pouco.
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