A escolha d’O Ano da Morte de Ricardo Reis para “caligrafar” o título não foi minha, mas sim de Pilar del Río. Para mim, foi uma escolha felicíssima: O Ano da Morte de Ricardo Reis é, atualmente, o “meu” livro de José Saramago. Escolha difícil, contudo, porque de outros também eu poderia dizer que são o “meu” livro de Saramago…

Para mim, O Ano da Morte de Ricardo Reis reúne muito daquilo que num romance (e em vários romances de Saramago) me permite o encontro com um grande género literário, na plenitude das suas potencialidades: o tratamento de personagens admiráveis (Ricardo Reis, Lídia, Marcenda), o diálogo com a História, a reinvenção ficcional do espaço, a interpelação paródica da literatura e dos seus escritores (sobretudo Pessoa e Camões), o tratamento estilístico na exata proporção que o relato exige.

[Com o Saramago tenho] várias histórias, claro. Conto duas apenas. Primeira: recebi a notícia da atribuição do Nobel por um telefonema, quando me deslocava de carro para o Porto (nessa altura eu era director da Biblioteca Nacional). Tratava-se de dar uma entrevista em direto, para a Antena 1; o carro saiu na primeira saída que apareceu, para que a entrevista telefónica tivesse lugar. Foi em Fátima: daí falei da justiça da atribuição do Nobel a Saramago. Segunda: um dia, numa das correrias de celebração do Nobel, um Saramago já fatigado desabafou: “O que vale é que isto é como ser Miss Universo, dura um ano e depois acaba”. Respondi: “A questão é que a Miss Universo, depois desse ano, continua bonita”. Assim foi.

A importância [da atribuição do Nobel para a literatura portuguesa contemporânea] é relativa. Trata-se de uma conquista pessoal, cujo efeito multiplicador é pouco significativo. E isto apesar de José Saramago se ter desdobrado em iniciativas e de ter correspondido a solicitações que lhe permitiram, muitas vezes (assisti a isso), tentar tirar partido do Nobel para a literatura portuguesa. Pouco ou nada se consegue, todavia, enquanto a situação for esta: não existe em Portugal uma política de língua. Sem isso, nada feito.


Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel