Entrego-me à auto-citação de algo que por aqui escrevi noutros Outubros: “Concluindo-se que não morro de amores pelo Dia das Bruxas - como dantes por cá se traduzia o Halloween –, também é verdade que não morro de amores pela impaciência cultural (ou cultural impaciência) que resmunga com a invasão desta tradição.” Mais: “Há tanta coisa que não nos é nativa, tanto precedente preceituador (não resisti à aliteração) a que já nos rendemos, e há também tantas tradições nossas paras as quais nos marimbamos, que o coro concertado contra o Halloween se está a tornar num responso de resmunguice.”
A minha proposta para este Outubro será, então, pôr de lado a habitual cabeça-de-alho-chocho e a alumiar uma cabeça de abóbora com olhos e dentes recortados. Não tenho qualquer vontade de me juntar às paradas com maus disfarces (vampiros sofríveis, ou a rameirização de enfermeiras) que têm tomado conta da capital, mas se a proposta for ficar em casa a ver um filme com o tema da época, aí entro na jogada. O género do terror não me tem entusiasmado particularmente na última década, mas há excepções que são uns docinhos na nossa cesta de Halloween. Assim sendo, ao longo do mês vou deixar algumas recomendações para filmes de terror recentes que, não estando entronizados junto dos clássicos, merecem chegar aos nossos ecrãs no último dia de Outubro.
It Follows – Vai Seguir-te (2004), de David Robert Mitchell
Minha classificação por estrelas: 4 em 7 ✭✭✭✭✩✩✩
Minha classificação por palavras: Não é nada foleiro.
Há pouco cometi a deselegância da auto-citação, agora será a deselegância de parafrasear sem cuidado. Lembro-me do Pedro Mexia uma vez ter escrito qualquer coisa como “os filmes de terror reflectem as angústias das épocas em que são feitos”. O Pedro perdoar-me-á se não faço justiça à frase original, mas vou tentar ser justo com a ideia - vinha a propósito da tendência da torture-porn no cinema de terror (os splatter films, como “Hostel” ou a série “Saw”), cuja violência gráfica ligada à tortura podia, sem grandes equívocos, relacionar-se com o mediatismo de casos de tortura reais nos anos zero – por exemplo, os relatos de Guantánamo.
Eu sei que o terror se tornou mainstream e foleiro, tipo uma tatuagem com caracteres chineses, tipo a expressão “tipo”, mas eu até avancei uma frase do Pedro Mexia que foi director interino da Cinemateca - ou seja, usei o trunfo duma referência culturalmente válida e agora tenho crédito para acarinhar filmes de terror, mesmo os mais foleiros, mesmo o “Pesadelo Em Elm Street XVI – Freddy em Benidorm.”
Mas não é nada foleiro o “It Follows” que motiva este texto. Opondo-se à fórmula do Mexia, uma das coisas que surpreende no filme é não ser do seu tempo. Se quisermos escavar para encontrar algum traço sociológico no “It Follows”, nada do que aparece é espelho das preocupações ou urgências mediáticas de hoje. Diria até que contraria os reflexos críticos da sociedade: é um filme motivado pelo contacto entre jovens, tanto na maldição como na redenção, e privilegia a amizade presencial como uma espécie de solidariedade essencial para a sobrevivência; ora isto não podia ser mais contrário às tendências tão badaladas da cultura das SMS, dos chats, do autismo instagrâmico, da virtualidade nas relações humanas. A própria alegoria sexual (a maldição que conduz o filme é trespassada através do sexo) remonta muito mais ao clima assombrado pela SIDA nos anos 80 do que a qualquer DST no presente.
Não arrisco afirmar que o realizador e argumentista David Robert Mitchell foge sempre intencionalmente à normalidade, mas é decerto motivado por esse “não ser do seu tempo” que referi. Por um lado, há os elementos clássicos do teen horror – o grupo de jovens isolado num determinado sítio; a existência de uma scream queen protagonista – e, por outro, há toda a preocupação em ser-se David Robert Mitchell com uma máscara de John Carpenter. Os trejeitos carpenterianos de It Follows são tantos e tão óbvios que quase podiam censurar-se. Mas, sejamos sinceros: como é que íamos ter coragem de censurar alguém que quer referenciar (e reverenciar) o mestre John Carpenter?
A banda sonora é carpenteriana. Os caminhantes assustadores no canto do olho são carpenterianos. A claustrofobia e a agorafobia são carpenterianas. Sente-se um subúrbio que remonta ao “Halloween”, e os vilões são amorais com disfarces familiares, como nos monstros do “The Thing” (claro, filmes do John Carpenter). E não se trata dum aglomerado de citações, há mesmo o assumir dos elementos carpenterianos como uma linguagem, um estilo - fazendo assim justiça ao génio JC, tantas vezes visto apenas como uma figura caricata que nos arranca simpatia, e não como um mestre que nos exige reverência.
Outro aspecto assinalável neste “It Follows” é a desconstrução de uma das regras invisíveis mais famosas do cinema de terror, aquela que dita que quem tem sexo no filme será o próximo a morrer. Aqui essa norma tem pouco de invisível e não é, ao contrário dos slasher movies dos anos 70 e 80, um recurso narrativo secundário. É recurso narrativo tão principal que até os próprios personagens têm consciência dele – o sexo amaldiçoado deixa de ser um segredo revelado apenas ao espectador. A cópula torna-se calculista, depois resgatadora e no fim ambígua. A sexualidade abandona a função de muleta moralista no enredo. Mitchel chama o cânone para depois lhe dar um pontapé.
Mas nem tudo são rosas. Um problema de filmes aparentemente consistentes é que os ocasionais pontos fracos se notam mais, e It Follows é réu dessa constância interrompida. Se um dos seus fortes é a alternância de planos subjectivos com narrativos, dando ao espectador a visibilidade e a invisibilidade que os personagens percepcionam – e emprestando assim um clima de medo ao filme - por outro lado há um par de cedências aos artifícios dos péssimos horror movies modernos, jogando com atalhos de som e imagem repentina que destronam o medo e procuram apenas o susto – os chamados “jump scares”. Dou-vos um spoiler: há uma porta esburacada onde o foco, de tão pouco subtil, anuncia um susto iminente. O sobressalto fica previsível e a porta torna-se, ela própria, um spoiler (spoilei um spoiler, tenho cem anos de perdão).
Outra coisa não plenamente satisfatória é o conjunto de ambiguidades que se espalham pelo filme. Fica a ideia de que a narrativa está fechada em torno das incertezas do seu autor, que as indecisões simulam ser afirmações, que as hesitações se querem fazer passar por convites à reflexão. Direi sempre que o cinema está mais bem servido quando se fragilizam as maquilhagens do que quando se maquilham as fragilidades.
Contas feitas, “It Follows – Vai Seguir-te” recomenda-se. Não é nada mau. Não é nada foleiro. No rescaldo dos filmes de terror da sofrível última década, estes “Não é nada” são tudo.
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