Há vinte anos, o Google anunciou o lançamento de uma ferramenta com tanto armazenamento para os nossos e-mails que mereceu honras de piada: "ah, é apenas algo do 1 de Abril". Afinal de contas, em 2004, quem em sã consciência ofereceria uma conta de e-mail com 1GB de espaço, de forma gratuita? Ainda para mais, com a promessa de uma pesquisa eficiente e maior organização do que a concorrência?
O Hotmail, que a Microsoft comprou em 1998, já permitia criar um mail gratuito desde 1996. Por cá, o Portugalmail - que ainda existe - e o SAPO Mail tinham dado os primeiros passos em 1999 e já ofereciam soluções semelhantes com ADN português. A Google, no entanto, só entrou em campo mais tarde. Mas quando o fez, fê-lo em grande. Tanto que ninguém acreditou muito bem que fosse verdade.
Não é preciso recorrer ao WayBack Machine, a famosa máquina do tempo da Internet, para dar de caras com o peculiar anúncio que pôs os norte-americanos a pensar que era mais uma brincadeira do Dia das Mentiras. O post ainda está disponível no blog do famoso motor de busca. Na essência, resume o porquê do novo produto e diz o que o separa da concorrência.
Revolucionar o mail
Além da linguagem utilizada regada a humor, o que salta à vista é a diferença do espaço disponibilizado. Nas "contas antigas", o Yahoo e o Hotmail, dois dos grandes players do correio eletrónico, tinham como limite máximo cerca de 60 e-mails (nas contas gratuitas, dava para ter mais espaço nas pagas). O que o Gmail propunha, com o seu 1 GB, era aumentar este número para 13.500, ou seja, 224 vezes mais espaço para armazenar e-mails. Sem que o utilizador pagasse mais por isso. Hoje parece algo irrisório, mas na altura era mesmo muito espaço.
- Reza o provérbio que "quando a esmola é demais, o santo desconfia". E sendo conhecida a apetência da Google para a brincadeira no Dia 1 de Abril, como daquela vez em que colocou um anúncio para contratar pessoal para o seu "Centro de Investigação Copérnico", a inaugurar na superfície lunar na primavera de 2007, não espanta que houvesse desconfiança na autenticidade desta oferta.
Segundo o post do blog, a inspiração para o Gmail veio de uma utilizadora que se queixou da falta de qualidade da oferta do início do milénio. Nomeadamente, queixou-se de duas coisas dos e-mails dessa altura:
- Tinha dificuldade em encontrar o que procurava;
- Às vezes era obrigada a apagar mensagens porque tinha pouco espaço.
Larry Page, na altura com 31 anos, colocou a sua empresa a pensar em como podia resolver estes problemas. E não só o fez, como mudou para sempre a forma como lidamos com o e-mail ao banalizar a sua utilização e mudou a forma como as pessoas trabalham, uma vez que se tornou numa ferramenta essencial para comunicação e colaboração.
Conta a The Associated Press (AP), a agência de notícias americana, que Larry Page disse na altura que "achava que as pessoas iam gostar disto". E, como em muitas outras coisas, o cofundador da Google não estava errado. Volvidas duas décadas, são 1,8 mil milhões de utilizadores a viver de mãos dadas com o Gmail.
A AP lembra também que em 2004, por se tratar apenas de uma versão beta e de só ser possível aceder por convite, as contas Gmail "eram tão cobiçadas que chegavam a ser vendidas por 250 dólares no eBay". Mais: relembra o episódio caricato em que a agência estava a ser criticada por noticiar um conteúdo — coisa que a agência sabia ser impossível porque um jornalista tinha ido à Califórnia a convite da Google, ver algo "que valeria o seu tempo".
O passaporte da Internet
O Gmail mudou ajudou a que a troca de e-mails fosse cada vez mais normal. Não só porque passou a incluir a possibilidade de pesquisa, mas também por colocar os conteúdos de forma mais organizada com recursos a separadores. Ou seja, muito à imagem do que vemos hoje, e já com o filtro que separa o spam do resto.
Mas com a aparição das redes sociais e desenvolvimento de aplicações como o Slack e o WhatsApp, o Google Chat caiu em desuso e a missão do e-mail ficou um pouco relegada para trocas de mensagens profissionais ("Viste o que te pedi? Está no mail", é a rotina na vida das empresas) ou institucionais (serve de canal de comunicação com serviços básicos como o de telecomunicações ou da água, por exemplo).
No entanto, a realidade é que a sua importância no dia-a-dia vai muito além disso. O e-mail profissional até pode ir trocando, mas o pessoal fica e permanece o mesmo. E isto é particularmente importante porque como nota a The Verge, o Gmail funciona como um passaporte para a Internet. Não só por ser a porta de entrada a todo o ecossistema Google (Android, YouTube, Docs, Drive, Maps, Play, Meets, Fotos, etc), mas por ser também a chave com que acedemos a outros muitos serviços.
Basta imaginar o cenário em que é preciso criar uma nova conta num site ou aplicação. Será que vamos preencher os dados para fazer uma compra ou ler uma notícia? Ou vamos simplesmente entrar com a conta Google (através do Gmail) e resolver o assunto nuns meros segundos? É provável que seja a última opção para despachar e economizar tempo, especialmente agora que há a rapidez das passkeys.
O futuro
Depois de tudo isto, temos de ir obrigatoriamente à questão: como é que será o Gmail do futuro? Vai acabar por perder aos poucos a sua importância no nosso dia-a-dia e vai passar a pasta à inteligência artificial? Ou, por outro lado, é a própria IA que vai modernizar o Gmail de modo a que este continue presente nas nossas vidas nos próximos 20 anos?
Com os avanços da IA, não é difícil de imaginar que o Gmail evolua para uma espécie de hub centralizado da Google, acabando por gerir não só e-mails, mas tudo o resto que faz parte do ecossistema.
Conclusão: há muita concorrência a ter em conta, leis de privacidade que devem alterar muito as regras do jogo e existe sempre o risco de o e-mail ser ultrapassado por outro meio de comunicação qualquer. Ainda assim, o mais provável é que o Gmail, sendo literalmente uma enciclopédia bibliográfica na vida de milhões - eu tenho acesso a textos de um Abílio adolescente no Google Docs com 15 anos que causam um misto de admiração e vergonha -, continue a perdurar nos tempos vindouros. Nem que seja noutro papel que não aquele para o qual foi originalmente concebido.
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