A editora Madalena Alfaia, responsável pela recente publicação em Portugal do livro, explica os motivos deste novo interesse, em entrevista à agência Lusa.

Trata-se de um romance estruturado como o diário de uma mulher de 43 anos, chamada Valeria, que através das suas confissões íntimas vai despertando para as suas insatisfações numa sociedade patriarcal.

Este romance tinha sido publicado em Portugal em 1972, numa edição de bolso da Minerva, com tradução de Maria Helena Bellino, e agora, mais de 50 anos passados, ganha nova roupagem e tradução de Ana Cláudia Santos.

O interesse renovado pela obra maior de Alba de Céspedes já se tinha começado a verificar internacionalmente, um “feliz acaso”, nas palavras da editora Madalena Alfaia, que nem sequer sabia que já tinha havido uma edição portuguesa quando decidiu contratar a obra.

“Foi um amigo editor estrangeiro que me falou do livro. Eu não o conhecia, fui ler e adorei, não só o livro, mas a própria história da autora, de tudo o que está à sua volta, da época. Enquadra-se muito bem na linha da Alfaguara, destes clássicos contemporâneos que também gostamos de publicar”, contou à Lusa.

É o caso de Lucia Berlin, Aurora Venturini ou James Baldwin, novos velhos autores que a Alfaguara recuperou, um pouco à semelhança do que outras editoras têm feito, como a Antígona, que tem reeditado Silvina Ocampo, ou a Relógio d’Água, que está a publicar Natalia Ginzburg.

Foi só depois de ter decidido publicar o livro que Madalena Alfaia percebeu “que estava a haver uma redescoberta da autora” e deparou-se com elogios de Annie Ernaux – “Ler Alba de Céspedes foi como aceder a um universo desconhecido: classes sociais, sentimentos, atmosferas” – e de Elena Ferrante, que chama a este um “livro de alento”, o tipo de livros que lhe fazem “boa companhia”.

Também a crítica internacional não tem poupado elogios à autora, que mereceu destaque em publicações como The Paris Review, The Guardian, The New York Times Book Review, Le Monde e The Financial Times, entre outros.

Ambientada na cidade de Roma da década de 1950, a história testemunha uma época através da vida de uma família e da sua turbulência doméstica, revelada pelas páginas de um diário que, simultaneamente, desvenda a vida íntima de uma mulher consigo mesma e com o universo familiar e social, profundamente patriarcal.

Este mundo em que Valéria Cossati - casada com um bancário de nome Michele, e com dois filhos estudantes, Mirella e Riccardo – vive é apresentado ao leitor desde o início.

A protagonista sai para comprar cigarros ao marido, porque queria que ele, quando acordasse os encontrasse na mesinha de cabeceira. Pelo caminho compra flores para si, mas a florista diz-lhe que “há que ter flores na mesa ao domingo”, porque “os homens reparam nisso”.

Na tabacaria compra um caderno preto, a contragosto do vendedor, que a avisa de que é proibido vender ao domingo outros produtos para além de tabaco, e esconde-o debaixo do casaco, para que o polícia à porta não visse.

É o início da subversão de Valeria, que estende este sentimento de proibição para o ambiente doméstico, sentindo necessidade de esconder da família aquele que será o seu diário, como se estivesse a fazer algo de muito errado, embora saiba que não, como confessa nas páginas que escreve.

A protagonista começa então uma luta para escrever às escondidas e ocultar o caderno em algum sítio onde não o encontrem, constatando que “não tinha, em toda a casa, uma gaveta, um recanto que fosse ainda” seu, numa clara referência à obra “Um quarto só seu”, de Viginia Woolf.

Este “caminho mais subversivo” que a autora percorre foi um dos que mais interessou à editora, admirada com a transversalidade e universalidade da história, que encontra ecos ainda hoje, até mesmo com a “realidade de Portugal”.

“Qualquer pessoa se pode encontrar algures nesta história, que tem muitos caminhos de leitura: podemos ir pelo caminho mais feminista, do encontro da mulher com o seu lugar, da conquista do seu lugar, pelo caminho mais subversivo, e depois há este pano de fundo de uma cidade em reconstrução no pós Segunda Guerra Mundial, esta burguesia decadente, esta família e os papéis do marido e dos filhos, e o colega de trabalho por quem se apaixona”.

Passando do conteúdo à forma, Madalena Alfaia refere que também lhe interessou a posição de narradora em que Valeria se colocou, alguém que se descobre a si própria através da escrita, que constrói a sua identidade e toma consciência de si própria a partir do momento em que começa a escrever um diário.

“No fundo, a autora coloca na Valéria o ónus da mulher que define a identidade a partir da escrita, e isso foi absolutamente inovador na época, e na linha do que muitas outras escritoras fizeram a seguir”.

O registo de literatura de intimidade e de ambiente doméstico que se encontra em “O Caderno Proibido” foi também algo precursor, numa altura em que a literatura estava virada para fora, para o que acontecia no mundo, ou para as grandes sagas familiares.

“Há uma redução da perspetiva, como se a lente da câmara se fosse fechando e fosse focando um ambiente mais pequeno, um universo mais reduzido, mas não por isso menos intenso, e é ali que acaba por acontecer tudo o que vai moldando aquelas vidas, e isso acabou por ser muito disruptivo na época: é uma história que é construída com quase nada”, afirmou.

O romance abre também para uma outra vertente literária – assinala a editora – porque é uma obra de ficção, “embrulhada neste rótulo de romance”, mas construída de uma forma não ficcional, como um diário.

“Isso acaba também por ser precursor de muito do que se faz hoje em dia, em que a não-ficção literária está a ganhar força e a ser equiparada a literatura de ficção”.

Também Ana Cláudia Santos não conhecia a obra, mas sentiu-se atraída logo nas primeiras páginas, tendo aceitado o desafio da editora para o traduzir, à semelhança do que já tinha feito com “Felizes anos de castigo”, de Fleur Jaeggy (Alfaguara), e “A consciência de Zeno”, de Ítalo Svevo (Penguin Clássicos).

Um dos principais desafios que a tradutora encontrou foi o de ser leal à escrita de uma mulher que, “sendo instruída e tendo emprego, não está habituada a escrever e escreve corretamente mas de forma algo informal, usando algumas repetições, como por exemplo, ‘parece-me que’”, contou à Lusa.

Por outro lado, importava ser fiel ao espírito da escrita de um “diário que regista impressões” e através do qual a protagonista “vai descobrindo aspetos da vida interior que lhe estavam vedados, começando a encarar o diário como uma maldição, por a fazer sentir coisas que seria mais fácil não sentir, nomeadamente em relação à vida conjugal, ao papel de mãe e mulher”.

À tradutora interessou também a forma como Valeria foi ganhando consciência, enquanto ia escrevendo, de que estava num período de transição geracional, no pós-guerra, em que os costumes são muito diferentes entre si e a sua mãe e entre si e a sua filha.

A própria história de Alba de Céspedes fascinou Madalena Alfaia, em parte por representar um universo muito diferente do de Valeria: nascida em Roma em 1911, cresceu num meio culto e erudito, numa família de esquerda, antifascista, e manteve uma ligação muito próxima dos intelectuais italianos da época.

Escritora, poeta e dramaturga, além de romances e poemas, escreveu também para rádio e televisão, bem como o argumento do filme “As amigas”, de Michelangelo Antonioni, com base no livro de Cesare Pavese "Tra donne sole", e fundou a revista literária Mercurio.

Alba De Céspedes foi ainda uma das líderes do movimento feminista da época e chegou a ser presa pelas suas atividades antifascistas, durante a ditadura totalitária, tendo visto dois dos seus romances proibidos e um prémio (pelo romance “Ninguém volta ao passado”) anulado por ordem de Mussolini.

A escritora é neta de Carlos Manuel de Céspedes, que proclamou a independência de Cuba em 1868 e pôs fim à escravatura no país.