Celebrar os cem anos do nascimento de Amália Rodrigues sem celebrar a música que ela cantou seria um erro demasiado crasso. Assim como o é pensar que, de Amália, se ouviu já tudo: todas as canções que gravou, todas as minúcias que registou, todas as histórias que viveu. Frederico Santiago sabê-lo-á bem. Há anos que o cantor lírico do coro do Teatro São Carlos se entrega a um trabalho notável de recuperação e reedição do espólio da fadista, espólio esse que teima (e “teima” será a palavra certa?) em não ter fim.
Ao longo da última década, ao público – não só português, e sim mundial – foi dada a oportunidade de ouvir uma vez mais Amália Rodrigues, pela mão de Frederico Santiago, com o selo da Valentim de Carvalho, editora para a qual a fadista gravou vários trabalhos em vida. “Amália no Chiado”, “Fado Português”, “Amália Canta Portugal” ou “Someday” são alguns dos discos que viram já a luz do dia, mas muito mais há por descobrir. Desde logo “Amália em Paris”, que reúne, entre inéditos, a gravação já previamente conhecida do concerto que Amália deu no Olympia, em Paris, em 1956.
No seu todo, a caixa é composta por 5CDs e um livro de 94 páginas, também ele com fotografias inéditas. Entre as benesses a que os fãs de Amália (ou meros curiosos) terão direito, a 23 de julho, estão alguns registos ao vivo feitos pela rádio francesa entre 1957 e 1965, um outro recital no Olympia (1967) e um espetáculo na mesma sala, em 1975. Se a própria Amália dizia que “de Paris partiu para o mundo”, não menos será verdade a frase de Frederico Santiago, em artigo assinado para a revista Visão Biografia: “a maior homenagem é ouvi-la”. Façamo-lo, pois.
Acho que as pessoas não têm a noção de que nós tivemos uma das melhores cantoras do séc. XX
Porquê Amália?
Porque foi a melhor coisa que a gente teve na música. Acho que as pessoas não têm a noção de que nós tivemos uma das melhores cantoras do séc. XX.
Num texto publicado na revista Visão Biografia, o Frederico escreveu que «em Portugal, a maior parte das pessoas nunca se apercebeu inteiramente da verdadeira dimensão de Amália enquanto cantora». Quais considera serem os maiores atributos da voz da fadista?
Não sei se é a voz em si - o material - ou a inteligência com que ela o usava. Uma coisa não funciona sem a outra. É um bocadinho como se o Miguel Ângelo, com todo o seu génio, tivesse esculpido o David em plasticina, não seria a mesma coisa... Mas, se ele tivesse aquele bloco de mármore de Carrara e não tivesse a inteligência que teve, também não servia. Só uma coisa não serve. E ela tinha as duas.
No mesmo texto, escreve também que «foi no estrangeiro que se reconheceu melhor a relevância musical da mulher portuguesa mais famosa de sempre». Acha que em Portugal, tanto quanto continuar a ouvir Amália, é necessário estudá-la?
Não, de todo. Acho que o principal na arte é sentir. E há muitas pessoas que sentem aquilo mesmo sem estudar. Não é o estudo que faz essa sensibilidade. Na literatura, quando se lê muito, pode-se comparar: mais depressa percebemos que um escritor é o que é. Na música é a mesma coisa.
Rui Vieira Nery escreveu que a «arte» de Amália é, «acima de tudo, uma arte sublime do dizer». Dados os poetas que lhe percorreram a voz, é correto dizer que Amália foi, ao mesmo tempo, cantora e declamadora?
Sim, sim. Mas qual é o grande cantor que não o é? Embora ela, muitas vezes, conseguisse... No "Barco Negro", quando ela faz aqueles "ais", só com um "ai" consegue transmitir muita coisa. Ela conseguia fazer as duas coisas. Mas tinha uma maneira muito especial de dizer a palavra, sem dúvida. E, sobretudo, sabia o que queria salientar num texto. Não canta com a mesma voz a 'Gaivota' como canta a 'Mariquinhas' ['Vou Dar de Beber à Dor']. Adapta sempre isso à música.
Não conheço outros casos de uma pessoa que pudesse, sem mudar nada na sua performance, estar às oito da noite no Lincoln Center e à meia-noite num restaurante com emigrantes
Amália dizia que o rótulo de «fadista» lhe foi colado pelas pessoas. No seguimento destas duas últimas questões, parece-lhe necessário "roubar" Amália ao fado e falar também das suas capacidades, da sua influência em outros géneros musicais, como o folclore ou o flamenco?
À estreiteza do fado-canção acho que sim; ela foi muito mais que isso. Por outro lado, ela também levou o fado a tudo o que fez. Se calhar um fado mais camoniano, da palavra fado, destino, aquela coisa de que ela tantas vezes falava. Esse sentido fatalista que ela dava ao canto, acho que estava sempre presente. E ela dizia que era uma fadista - nunca deixou de o dizer. Agora, ela era uma cantora. E uma cantora que conseguia fazer muitos géneros sem nunca soar falso. Não conheço outros casos de uma pessoa que pudesse, sem mudar nada na sua performance, estar às oito da noite no Lincoln Center e à meia-noite num restaurante com emigrantes. O canto dela adaptava-se a todas as situações e, de certa maneira, a quase todos os repertórios. A quase todos... Não a estou a ver cantar ópera, por exemplo.
Nem sequer havia um concerto de fado antes da Amália, nunca ninguém tinha subido ao palco em recital
Após a "explosão" internacional, muitos foram os que compararam Amália a duas outras grandes cantoras: Maria Callas e Edith Piaf. Acha tais comparações lisonjeiras, ou são algo que acaba por diminuir a posição única de Amália no mundo do canto?
Não, claro que são lisonjeiras. Sobretudo no caso da Callas, que eu acho que foi uma cantora que, tal como a Amália, mudou o género que representava. O género começou a ser completamente diferente depois de elas terem existido. E são duas cantoras muito ligadas à palavra. A Callas também revolucionou a ópera, no sentido em que deu uma importância à palavra que os outros cantores de ópera não tinham dado ainda. E a Amália fê-lo no fado. Só que a Amália, por outro lado, teve a sorte de apanhar um género que estava muito pouco explorado. Nem sequer havia um concerto de fado antes da Amália, nunca ninguém tinha subido ao palco em recital. Foi ela que o fez pela primeira vez, no estrangeiro - lá está -, porque em Portugal a Amália cantava pouco. E sobretudo nunca cantava nessa coisa de recital, como fazia no estrangeiro. Fazia segundas partes, terminava alguns eventos que havia, mas a ideia de fazer um recital de duas partes num teatro importante foi algo que ela, em Portugal, só fez nos anos 80.
Passando agora para as gravações: Amália já era um nome conhecido mesmo antes de lançar o seu primeiro disco. Mas considera que foram estes registos - pela sua capacidade de disseminação - aquilo que a deificou?
Não, acho que antes disso, em Portugal, o cinema contribuiu muito para a Amália. Aqueles dois filmes que ela fez em 1947 [“Capas Negras” e “Fado, História de uma Cantadeira”] tornaram-na uma vedeta muito nacional. Não nos devemos esquecer que estamos a falar dos anos 40, a maior parte das pessoas não tinha discos, ouviam rádio. O contacto era assim. Esta coisa do disco é algo que aparece mais nos anos 50 e 60. Ela também foi uma cantora que soube muito bem usar o microfone - e aí também é parecida com a Callas. Ao vivo, canta de uma maneira diferente daquela que canta em disco.
Não se consegue conhecer a Amália só com um disco, porque ela ao vivo também era impressionante
Amália diz, na sua biografia, que foi Hugo Ribeiro, da Valentim de Carvalho, quem gravou aquela que achava ser a sua voz. Concorda? Qual considera ser a que melhor define Amália como artista musical?
Sim, completamente. O melhor disco da Amália é o "Com Que Voz", no sentido em que é um álbum, com música extraordinária do Alain Oulman. Mas acho que não se consegue conhecer a Amália só com um disco, porque ela ao vivo também era impressionante. A maneira como misturava reportórios era extraordinária. A noção que tinha de ritmo, de nunca chatear as pessoas... Ela não se punha a cantar fados atrás de fados, nunca. Intercalava sempre isso com momentos de explosão, seja através de folclore, seja daquelas cantigas espanholas. E preparava muito bem a catarse de alguns fados tristes que punha no meio. Isso era uma coisa que ela fazia ao vivo e que mostrava também essa noção de palco que ela tinha. Isso ouve-se nos [registos de] concertos ao vivo.
Pedia-lhe que desenvolvesse um pouco mais acerca daquilo que os fãs poderão ouvir em “Amália em Paris”, e que me revelasse - se puder - o que se segue a nível de lançamentos.
O único disco desta caixa que já é conhecido é esse primeiro recital no Olympia, em 1956. O resto é tudo gravações inéditas, muitas delas feitas pela Rádio Renascença. Acho que é de salientar isso, o ter tornado disponível património que não estava cá, e do auge da Amália. Lá no meio pus também uma festa para emigrantes, em 1964, também para provar essa coisa que ela tinha, do vedetismo nunca lhe ter subido à cabeça. Ela cantava nas salas mais caras de Paris, onde os portugueses, na altura, não podiam entrar, mas também acedia a fazer muitas festas de forma gratuita, como essa, organizada pelo Diário Popular.
De momento estou a preparar um disco que vai ter ensaios da Amália em estúdio e em casa dela, com repertório do Alain Oulman, em 1970. Para o fim deste ano, haverá uma reedição do "Busto" [1962], com algum material inédito. Para o ano sairá, não sei se duplo ou triplo, um [disco] com as primeiras gravações. Apareceram gravações da primeira fase dela, anteriores até aos primeiros discos que gravou, no Brasil, em 1945.
Ela era tão genial que não se levava tão a sério como às vezes as pessoas que não são tão geniais se levam
A título de curiosidade, li no livro de Fernando Dacosta – "Amália - A Ressurreição" - que em 2017 foi descoberta, nos arquivos do antigo KGB, uma gravação de um concerto da fadista em Moscovo, e que a Valentim de Carvalho estaria a tentar adquiri-la. Fiz alguma pesquisa e confesso que não consegui confirmar se a mesma já teria sido lançada...
Não foi, não foi. E a Valentim de Carvalho também não está a tentar ainda trazê-la. Essa gravação existe: um dos concertos dela na sala Tchaikovsky foi filmado. Ainda não comecei a trabalhar nisso, mas era bom ser editado.
Para terminar, uma frase que li durante as minhas pesquisas: «Amália foi o estranho caso de um imenso talento aliado a uma esplêndida falta de ambição». Cabe-nos a nós, fãs, curiosos, investigadores, estudiosos, ter para ela a ambição que ela não teve, mantendo viva a sua grandeza?
Não sei, não sei. Isso é complicado. Essa falta de ambição não é bem o não ser ambicioso: é óbvio que ninguém faz uma carreira destas sem ter alguma ambição. Agora, eu acho é que ela, para além da cantora que era, tinha também um bocadinho de cabeça de poeta. Era uma pessoa eternamente descontente, e para quem estes processos todos... Essa ambição não é uma de "vou ali, vou vencer". Há muitas coisas que ela fazia no estrangeiro, importantíssimas; depois chegava a Lisboa e um jornalista perguntava-lhe como tinha sido, e ela [só] respondia "correu bem". No fundo, ela era tão genial que não se levava tão a sério como às vezes as pessoas que não são tão geniais se levam. [Manter viva essa ambição] nem é bem por ela, é algo que também fazemos porque dá muito prazer ouvi-la. Sobretudo é por nós que o fazemos.
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