— Amo-te.

— Pois, eu também não

A história começa com uma linha de baixo, gloriosa e lasciva, antes de a melodia de um órgão Hammond se começar a aninhar nos nossos ouvidos, de onde raramente sairá. Ou talvez comece algo antes, mais precisamente em 1967, com uma entrada orquestral e a voz da única possível rival de Marilyn Monroe no que toca a sex symbols dos anos 60, Brigitte Bardot. Ou, até, num puro e límpido piano, o mesmo que ouvimos em “Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres”, filme de 2010 que conta a história do poeta, músico, boémio, sedutor, controverso, alcoólico e tantos adjetivos mais, que fez estremecer a França e o mundo numa época em que tais tremores de terra – o Maio de 1968, a onda hippie, a Guerra do Vietname – eram absolutamente comuns.

Mas, se quisermos ser honestos, a história de 'Je T'aime Moi Non Plus' começa na verdade muitos anos antes de a canção ser sequer editada na sua versão mais conhecida, a que foi gravada com Jane Birkin. Começa quando Joseph Ginsburg, ucraniano judeu que emigrou para Paris após a Revolução Russa, ensinou ao seu filho Lucien – posteriormente Serge – a tocar piano, sem saber que desse gesto nasceria um dos maiores compositores de música pop do século XX, autor de mais de meio milhar de canções. E continua numa França ocupada durante a II Grande Guerra, quando a criança Serge era forçada a usar, na lapela, a horrenda estrela dourada que o reduzia à condição de “judeu”. Prossegue quando Serge decide abandonar a pintura e dedicar-se à música, tocando em bares fumarentos. E atinge o seu primeiro ponto alto com a ajuda de uma outra grande figura da França do pós-Guerra: Boris Vian.

Foi o escritor – também músico – quem mais influenciou Serge Gainsbourg no início da carreira deste, tendo sido igualmente o primeiro a dedicar-lhe uma crítica positiva no jornal satírico “Le Canard Enchaîné”, em 1957. À altura, Gainsbourg era mais tímido do que aquilo que veio a demonstrar nas décadas subsequentes, mas o espírito subversivo já lá se encontrava. É que só a subversão, a vontade de rasgar com os bons costumes, daria origem a canções tão bizarras quanto mórbidas quanto fabulosas como 'Le Poinçonneur des Lilas' (1958), sobre um pica-bilhetes que, farto do marasmo do seu emprego, decide picar a sua própria cabeça.

O início de carreira de Gainsbourg, apesar de ter dado origem a alguns temas hoje clássicos, não foi aquilo que se possa chamar de sucesso retumbante: o público rejeitava-o, os críticos não queriam saber, as canções flutuavam durante alguns metros e caíam rapidamente como um balão rebentado. Mas o músico beneficiou, e muito, de ter amigos certos nos sítios certos, como o supracitado Vian, como Jacques Brel e principalmente como Juliette Gréco, que cantou – e popularizou – 'La Javanaise'.

Era este o passo libidinoso que faltava a um homem que, tendo sido quase sempre descrito como “feio”, não deixou de amar e ser amado por mulheres inatingíveis ao operário comum: Gréco, Bardot, Birkin, e até – segundo consta, e algumas negam-no – Marianne Faithfull, Catherine Deneuve ou Isabelle Adjani. O passo que o levaria a procurar ainda mais o escândalo, o confronto, o choque com a burguesia. O passo que deu origem tanto à vitória no Festival da Eurovisão, pelo Luxemburgo, em 1965, com France Gall a cantar 'Poupée de Cire, Poupée de Son', como ao rubor no rosto da França assim que esta escutou 'Les Sucettes', pela voz da mesma France Gall, no ano seguinte. Quem diria que uma canção sobre uma jovem moça que gosta de... chupar chupa-chupas provocaria tamanho escândalo?

Por esta altura, outro escândalo bateria à porta de Serge Gainsbourg. O seu affair com Brigitte Bardot não passou despercebido à imprensa, ainda para mais quando a “bomba” francesa era casada com o milionário alemão Gunter Sachs, que não achou – dito de forma ingénua – minimamente piada ao enlace. E menos piada achou após Bardot ter pedido a Gainsbourg, que com ela gravou inúmeros temas icónicos ('Harley Davidson', 'Comic Strip' e, claro, 'Bonnie and Clyde'), que lhe compusesse “a mais bela canção de amor”. O resultado: 'Je T'aime Moi Non Plus'.

créditos: DOMINIQUE FAGET / AFP

Inicialmente, a canção ficou esquecida na gaveta, tendo sido gravada com Bardot, que depois pediu a Gainsbourg que a não lançasse por respeito a Gunter Sachs. Mas seria impossível travar a marcha d'“a mais bela canção de amor” - ou, melhor dizendo, da mais bela canção anti-amor. Porque é disso que se trata 'Je T'aime Moi Non Plus': de um romance puro, duro e absolutamente físico, sem amarras ou palavras ditas no crepúsculo, sem nada mais que movimentos de ancas dentro de ancas. De um romance que ao mínimo “amo-te” replica “pois, pá, mas eu não”, como se nada fosse, e nem vale a pena o/a amante se chatear com isso porque nesta relação existe apenas um momento, o do sexo. De um romance que não é mais que sinónimo para orgasmo.

O mesmo orgasmo, ou os mesmos sons de um orgasmo, replicados primeiro por Bardot, e mais tarde por Jane Birkin, que haveria de ficar com Gainsbourg durante pouco mais de uma década – e de quem teve uma filha, Charlotte Gainsbourg, que até atuará este ano em Portugal, no festival Super Bock Super Rock. Durante muito tempo correram rumores de que Jane e Serge teriam gravado, em estúdio, os sons do seu próprio ato sexual – rumores a que o músico respondeu, sardonicamente, “ainda bem que não o fizemos, porque aí teria sido um disco de longa-duração”.

O orgasmo, como se sabe – e particularmente o feminino – não é muito bem visto pela Igreja Católica. E, por não o ser, a resposta do Vaticano, à altura, só poderia ser uma: 'Je T'aime Moi Non Plus' não poderia existir num mundo temente a Deus. Era demasiado obscena, pornográfica. Foi condenada pelo Vaticano, e existem relatos de que o responsável pela edição do single em Itália foi excomungado. Espanha ou Suécia censuraram-na. Em França, só poderia ser escutada, na rádio, após as 23h00. A BBC baniu-a das suas playlists.

créditos: Serge Gainsbourg com Jane Birkin, setembro de 1970

O problema (e qualquer católico sabe-o bem, e qualquer pessoa que leia a Bíblia Sagrada por uma vez que seja também o saberá) é que o fruto proibido é o mais apetecido. A polémica mais não fez que gerar um interesse enorme em 'Je T'aime Moi Non Plus' por entre o grande público: todos queriam ouvir a canção onde uma mulher gemia, a canção que era sobre amor, mas era principalmente sobre sexo, a canção que na era do free love provocou quebras de tensão entre os conservadores. O resultado é mais que óbvio: chegou ao número um das tabelas de vendas em vários países europeus, incluindo no Reino Unido – a primeira canção a ser banida, e a primeira cantada numa língua que não a inglesa, a consegui-lo. Nos Estados Unidos, onde também foi alvo de acusações de obscenidade e de alguma censura, conseguiu algo ainda melhor que um 1º lugar nas tabelas: um (em muito apropriado) 69º lugar. Desde então, foi cantada por nomes tão díspares quanto Donna Summer, Einstürzende Neubauten, Psychic TV, Cibo Matto, Nick Cave, Brian Molko ou Cat Power – o que só atesta ao seu peso.

50 anos depois, é difícil não encarar 'Je T'aime Moi Non Plus' como o magnum opus de Gainsbourg, tanto a nível musical como de subversão – e estamos a falar de um homem que compôs um álbum inteiro sobre um romance efebófilo, inspirado por “Lolita” (“Histoire de Melody Nelson”, 1971), que misturou “A Marselhesa”, o hino nacional francês, com música reggae (“Aux Armes Et Cætera”, 1979), que cantou o incesto com a sua própria filha, Charlotte ('Lemon Incest', 1985) e que, em direto para a televisão, disse a Whitney Houston que queria fazer certas coisas com ela. Primeiro, por ter sido lançada numa sociedade ainda algo conservadora, apesar das muitas revoluções a nível cultural que se fizeram sentir na década de 60; depois, por ter sido dos primeiros grandes sucessos a falar do sexo como objetivo único, sem rodeios, sem palavras mansas, apenas como ato em si e não como fruto de quaisquer emoções; e, finalmente, por tê-lo feito de forma extraordinariamente orelhuda – através do baixo, do órgão, dos versos repletos de trocadilhos, do som do orgasmo.

A história, tanto a da pop como a da humanidade em si, não começou nem terminará com 'Je T'aime Moi Non Plus'; mas não seria nada sem esta.