A 16 de outubro, António Fonseca ia dar aula na Escola Superior de Educação de Coimbra e a maioria dos finalistas de teatro faltaram – os incêndios fustigaram os concelhos onde muitos viviam.
No dia seguinte, Joana, natural de Tábua, chega com a aula já a decorrer, a arrastar a mala, a fazer muito barulho e ignorando a turma. Senta-se e diz: “Ardeu tudo. Tudo queimado”.
“A partir daqui, o que é que fazes? Temos que trabalhar com isto. Estamos aqui para formar pessoas que vão ser atores, artistas, que vão trabalhar com estes materiais. Tínhamos as coisas todas – tudo em carne viva”, disse à agência Lusa o ator António Fonseca, que dirige a peça em conjunto com Pedro Lamas.
Antes de 15 de outubro, o grupo já tinha decidido ter como ponto de partida o “Decameron”, de Boccaccio, em que dez jovens, em meados do século XIV, saem de uma Florença fustigada pela peste e fecham-se num palácio, passando o tempo a contar histórias.
“Quando tudo ruiu à nossa volta, o que é que a gente faz? Quando tudo arde, quando a guerra nuclear está em cima da nossa cabeça, o que se faz? A gente chora? Desespera? Foge? O que fazemos?”, questiona António Fonseca, considerando que após o 15 de outubro, os incêndios acabaram por moldar a peça que continuou com a base de Boccaccio.
A ficção, sublinha, é o que salva as pessoas, tendo que se “inventar um mundo onde seja possível respirar”.
“Esta é a função do artista: criar mundos alternativos a este mundo impossível”, frisa.
No palco da Oficina Municipal do Teatro (OMT), em Coimbra, 13 atores vestem a pele de pantomineiros e refugiam-se em histórias, enquanto se ouvem os uivos dos lobos, acompanhados pelo som do crepitar das chamas.
A sonoplastia representa aquilo que acontece na própria peça, que mistura e confunde os lobos e os incêndios. “É um lobo. Não, é o fogo”, gritam as personagens, iluminadas por uma luz vermelha.
O lobo e o fogo vão surgindo por entre histórias vincadamente cómicas que nada têm a ver com incêndios, num balanço entre comédia e momentos dramáticos, com o espetador a ir sendo surpreendido por frases que inquietam – “Se não houver [um sítio para passar para o paraíso], o que é que a gente anda aqui a fazer?”, pergunta um.
Pela peça que pede emprestado o título à obra de Aquilino Ribeiro sobre a luta pelos baldios durante o Estado Novo, “Quando os lobos uivam”, há tempo para breves referências ao momento presente.
Há quem ache que terras sem eucaliptos são pura fantasia, há entrevistas à TVI de alguém que salvou um menino de um lobo e que termina a pedir que “o Governo faça alguma coisa” e há quem diga que o “Presidente da República deixa tudo, se tiver pessoas para beijar”.
Para além da apresentação da peça em Coimbra até ao dia 28, (sempre às 21:30 e domingos às 17:00), o espetáculo desloca-se também aos vários pontos do país de onde são oriundos os alunos.
Joana Gomes, de Tábua, considera que, quando a peça passar na sua vila, “vai ser uma lufada de ar fresco”.
“Vai tocar na ferida, mas de uma maneira de que as pessoas precisam. Isto aconteceu, mas temos que dar a volta”, conta à Lusa a aluna de teatro que andou a ajudar a apagar o fogo numa das aldeias do concelho.
Joana socorre-se das palavras de António Fonseca para dizer que a cultura pode ter a função de colocar “o Betadine nas feridas”, de “dar um bocadinho de cor”.
“O incêndio ou os lobos são o boicote que a vida nos traz. Temos a vida mais ou menos estruturada, mas depois vai-nos boicotando os planos. Acho que foi termos sido confrontados com isso que nos fez perceber como em palco poderemos entender esses boicotes da vida”, vinca Sofia Coelho, outra das atrizes da peça.
Segundo o ator Pedro Lamas, que acompanha os trabalhos do curso de teatro nos últimos anos, há algo de peculiar no espetáculo que é apresentado desta vez.
“Uma das grandes lutas que temos no projeto de intervenção [do curso] é dar a consciência ao aluno da apropriação que ele tem que fazer, não só do tema mas de toda a questão que está a trabalhar”, explica.
Em “Enquanto os lobos uivam”, a luta “é um pouco diferente, porque aqui essa apropriação a vida já a fez”, explica.
Depois de Coimbra, o espetáculo, que conta com coprodução do Teatrão, vai passar em fevereiro e abril por várias localidades, como Portela (Montemor-o-Velho), Celorico da Beira, Espinhel (Águeda), Valença, Freixedas (Pinhel), Olhão e Nelas.
Comentários