I said a hip hop the hippie the hippie
To the hip hip hop and you don't stop
The rock it to the bang bang boogie
Say up jump the boogie to the rhythm of the boogie, the beat
Now, what you hear is not a test, I'm rapping to the beat
And me, the groove, and my friends are gonna try to move your feet
Seis versos apenas. Não os mais literatos, não os mais linguisticamente dotados, não aqueles que centenas de milhares de adolescentes debitam diariamente, colocam nas redes sociais, ouvem vezes e vezes sem conta. Mas seis versos que mudaram, para sempre, a história da música. São os seis primeiros versos de 'Rapper's Delight', tema gravado pelos Sugarhill Gang em 1979, e o qual muitos veem como o “ponto zero” do hip-hop – não só porque é o primeiro disco gravado a conter as palavras “hip hop”, mas também porque foi o que popularizou o género entre o grande público; chegou ao 36º lugar das tabelas de vendas norte-americanas, ao 1º lugar no Canadá e na Holanda e ao 3º lugar no Reino Unido. Havia hip-hop antes de 'Rapper's Delight'; mas o hip-hop não seria o que era hoje sem ele.
Para contar a história de 'Rapper's Delight', há que recuar um pouco no tempo, bem antes de o single ter sido editado há precisamente 40 anos, a 16 de setembro de 1979. No princípio não era o verbo, mas a batida: a percussão, o tambor, o ritmo que se escutava nas festas de rua do Bronx, onde dezenas de jovens afro-americanos se juntavam para se divertirem. Omnipresente, tal como em muita da música eletrónica de hoje, estava a figura do DJ; era ele quem escolhia os melhores temas, da soul ao funk, do r&b ao disco. Por melhores, leia-se: aqueles que faziam dançar. Mas depressa os DJs – e um em particular, Kool Herc, nascido na Jamaica mas cedo emigrado para os Estados Unidos – perceberam que o que mais apelava ao gingar da anca eram os momentos, nas canções, onde a percussão tomava a dianteira. Conclusão: tornar estes momentos o mais longos possível, com a preciosa ajuda de dois gira-discos e de duas cópias do mesmo vinil.
Nascia então o break, o nome dado a esses mesmos momentos. E nasciam DJs capazes dos melhores breaks e das melhores escolhas, como Grandmaster Flash, Grandwizard Theodore (o homem que inventou o scratching, ou o riscar do vinil como forma de arte), ou Afrika Bambaata. Mas um break também não valia por si só. E eis que surge (agora, sim) o verbo, pela boca dos chamados MCs, abreviação de “mestres de cerimónias” e figuras importadas das festas jamaicanas: homens que iam saudando o DJ, contando piadas, ou debitando poesia de rua à medida que a música ia sendo tocada e escutada. Em suma: os tipos que animavam o público, para que este não se aborrecesse em demasia.
As festas de rua (ou block parties) eram o segredo mais bem guardado dos bairros de Nova Iorque dos anos 70, à medida que meio mundo ia enlouquecendo com o disco e a outra metade com o funk e a soul suadas de James Brown, uma das maiores influências para a “velha guarda” do hip-hop. Mas deixaram de um segredo quando começaram a crescer. Um fator importantíssimo para esse crescimento foi o “apagão” sentido em Nova Iorque a 13 e 14 de julho de 1977 onde, com a ausência de luz, vieram as trevas: violência, pânico, e pelo menos um homicídio. E, também, uma sucessão de pilhagens a lojas de equipamento eletrónico – que acabou nas mãos de DJs, MCs, e aspirantes a um e a outro, alimentando uma “cena” que até então estava restrita a uma mão cheia de nomes.
O bairro invade o mundo
Com mais ouvidos em êxtase e mais corpos em rodopio a prestar-lhes atenção, as festas do Bronx começaram a tornar-se motivo de conversa por todo o lado, a atingir estatuto de obrigatoriedade presencial por entre a juventude local. E a alimentar sonhos. Quem não tinha discos suficientes para ser DJ, poderia sempre tornar-se MC; quem preferia brincar com o vinil procurava, nas lojas, os LPs com maior força rítmica. Nas esquinas, iam-se trocando versos, em casa, iam-se escrevendo rimas em cadernos de linhas. Das ruas, passava-se para os clubes: os DJs e seus coletivos respetivos eram sendo contratados para animar as noites de muitos.
Foi num desses clubes que Sylvia Robinson, cantautora de sucesso nos anos 50, produtora nos anos 70, viu e sentiu ao vivo e pela primeira vez aquilo que era o hip-hop. Uma atuação de Lovebug Starski no Harlem World foi como que uma revelação: esta música tinha que ser gravada, lançada, comercializada. O problema era arranjar um DJ e/ou um MC disposto a fazê-lo. Após algumas negas, Robinson chegou até Henry Jackson, mais conhecido como Big Bank Hank, manager do rapper Grandmaster Caz e do coletivo deste, os Mighty Force MC's. Uma história hollywoodesca: ouviu-o a debitar versos na pizzaria onde este trabalhava. O problema: os versos não eram seus, e sim de Caz.
Nada que fosse um grande problema para Hank, para Robinson e para Michael Wright (ou “Wonder Mike”) e Guy O'Brien (ou “Master Gee”), que acabariam por formar os Sugarhill Gang com o primeiro – ou, melhor, acabariam por ser transformados nos Sugarhill Gang por Sylvia Robinson, que queria aproveitar o impulso obtido pelo hip-hop o mais depressa possível, fosse com quem fosse. Para os três MCs esta era uma oportunidade, uma forma de colocar as suas vozes em disco. Uma oportunidade que, naturalmente, não desperdiçaram.
Encontradas as vozes faltava a música. Tinha que ser dançável, e à altura poucas coisas eram tão dançáveis quanto o disco. A solução encontrada passou por uma das bandas de maior sucesso dos anos 70: os, Chic, de Nile Rodgers, que “emprestaram” a linha de baixo de 'Good Times' a 'Rapper's Delight'. “Emprestaram”, entre aspas, porque não souberam que a mesma foi utilizada pelos Sugarhill Gang semanas após o single ter sido editado (e, após ameaçarem o grupo com um processo em tribunal, viram os seus nomes creditados). E também porque não se trata de um sample, um trecho de uma canção inserida numa outra; Sylvia Robinson contratou uma banda à parte para tocar o instrumental.
Respeito, Avanço e Popularidade
'Rapper's Delight' foi um êxito imediato; já haviam sido lançados discos contendo raps, mas nenhum deles captou de forma tão vívida aquilo em que consistiam as festas de rua e as noites nova-iorquinas. Era – e é – um tema que apela à festa, à união, ao bom humor. Um tema que introduz todo aquele movimento às grandes audiências, um livro amarelo onde a história é resumida em 15 minutos de groove. E podia ter-se tornado no primeiro disco rap a atingir o estatuto de disco de ouro (oficialmente foi 'The Breaks', the Kurtis Blow, editado em 1980), não fosse por um pequeno detalhe: a Sugar Hill Records, editora formada por Robinson e pela qual se lançou o single, não estava registada na Associação Americana da Indústria de Gravação (RIAA), pelo que não foi possível saber ao certo quantas cópias vendeu (estima-se que milhares; e sabe-se que, independentemente dessa falha, a produtora mandou fazer os seus próprios discos de ouro para entregar aos artistas...).
Só não obteve, dos seus pares, o mesmo respeito à altura. Existiu alguma inveja, claro, por parte de alguns DJs e MCs pelo facto de não ter sido deles o primeiro registo vinílico de sucesso da, então emergente, cultura hip-hop. Outros foram mais longe, e criticaram o que apelidaram de “inautêntico”: 'Rapper's Delight' era, afinal, um produto de uma indústria musical sedenta pela next big thing, e não algo orgânico, vindo das mesmas ruas onde o hip-hop nasceu. O DJ, até então peça importante na cultura, não existe no single, tendo sido substituído por uma banda. E os MCs não eram os mais sagazes, os mais populares, os mais feéricos; eram um trio reunido à pressa, com versos roubados de outros liricistas (e Grandmaster Caz não escondeu, durante muitos anos, o seu rancor); eram um grupo que não havia refinado a sua arte de rappar nas festas, nas esquinas, nos clubes – em suma, em público.
No entanto, mesmo que essas críticas sejam bem fundamentadas, uma coisa é certa: sem 'Rapper's Delight', provavelmente o hip-hop não obteria o mesmo estatuto que tem hoje, arriscando ficar para sempre consignado ao underground ou ao estatuto de novelty act – algo que a princípio pauta pela originalidade mas que rapidamente nos cansa. Sem 'Rapper's Delight', não se saberia como colocar o hip-hop no vinil, reduzi-lo a um formato “amigo da rádio”: o single pode ter, ao todo, 15 minutos, mas as festas de rua duravam bem mais horas que isso, e os MCs presentes rimavam durante todo esse período. Sem 'Rapper's Delight', o hip-hop não invadiria os estúdios, visto que, até então, a única forma de escutar esta música era através das festas ou das cassetes gravadas nessas mesmas festas.
E, sem 'Rapper's Delight', os demais DJs e MCs não sentiriam a necessidade competitiva de chamar, também, até si os louros que acreditavam merecer, procurando estúdios e editoras que pudessem pôr a sua música nas lojas. “O jogo mudou”, explicaria mais tarde Grandmaster Flash. “Já não se tratava de dominar o Bronx ou Manhattan, e sim do quão depressa se conseguia lançar um disco”. Existindo discos, a cultura espalha-se. Chegou ao punk rock – os Blondie depressa se enamoraram do hip-hop, assim como os Clash –, cruzou-se com o hard rock e o metal nos anos 80 (pelas mãos dos Run-D.M.C. ou Public Enemy), entrou em rota de colisão contra si mesma nos anos 90 (com a rivalidade Leste-Oeste nos Estados Unidos) e disseminou-se pelo mundo inteiro, existindo hoje em dia uma “cena” hip-hop em centenas de países, e ocupando os lugares cimeiros das preferências dos mais jovens. Os 40 anos de 'Rapper's Delight' são, por isso, os 40 anos do hip-hop. Celebremo-lo.
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