“Bairro novo, bairro velho, gente boa
Em casa não há quem fique!

Vai na marcha todo o povo de Lisboa,
Da Graça a Campo d'Ourique!
Olha o castelo velhinho, que é coroa
Desta Lisboa sem par!
Abram, rapazes, caminho,
Que passar vai a Lisboa!
Que vai a Alfama passar!”

Com as suas estrofes imortalizadas por Amália Rodrigues, este ano, a canção “Lá Vai Lisboa” não vai, pela primeira vez em décadas, tornar-se realidade na noite de Santo António. Não só não irá na marcha o povo da cidade, como deverá ficar por casa, quando, normalmente, encheria as ruas da capital.

Com a chegada da pandemia da covid-19 a Portugal em inícios de março, a Câmara Municipal de Lisboa anunciou logo em abril o cancelamento das Festas Populares, e com elas, das Marchas que lhes dão movimento no tradicional desfile ao longo da Avenida da Liberdade na noite de Santo António. As homenagens à lendária fadista — tema das marchas deste ano por coincidir com o centenário do seu nascimento —, que tantas loas cantou à capital, terão mesmo de ficar para 2021.

“Na sequência dessas medidas de redução dos riscos de contágio, e atendendo ao desenrolar da atual pandemia e do período de confinamento e distanciamento social ter inviabilizado os ensaios, a Câmara Municipal decidiu cancelar a edição de 2020 das Marchas Populares de Lisboa”, lê-se no comunicado da autarquia.

Para o coordenador da marcha do Alto do Pina, tal decisão causou “muita tristeza” a um grupo que “vive isto afincadamente”, mas foi também recebida com compreensão e sem surpresa. Tendo esta marcha vencido o certame do ano passado, Pedro Jesus e o restante grupo do Ginásio do Alto do Pina, estiveram em Macau em janeiro a convite dos Serviços de Turismo da região para desfilar nas comemorações do Ano Novo Chinês. Lá, tiveram uma visão do futuro que os esperava.

“Apanhámos o pico daquilo que era a epidemia e passou a ser a pandemia. No nosso caso, já sabíamos ou desconfiávamos que iria ter este desfecho”, explica Pedro Jesus. Por isso mesmo, quando chegou a Portugal, o responsável optou por avisar a EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural), a entidade municipal encarregada da organização das Festas de Lisboa.

“Alertámos que, caso as festas, as marchas e os arraiais de Lisboa fossem cancelados devido à crise pandémica, estaríamos dispostos a fazer outro tipo de espetáculo ou participar noutro tipo de festejos que a cidade quisesse”, diz. Tal, porém, não veio a acontecer, e apesar da decisão do cancelamento ter sido tomada com mais de dois meses de antecedência, nem por isso deixou de ter consequências para as coletividades que organizam as marchas.

Para marchar, há que investir, e um ano sem festas traz prejuízo a quem as organiza

Para muitos, as marchas resumem-se a uma única noite de folia nas ruas lisboetas. Para quem as prepara, porém, é trabalho que pode levar um ano inteiro. Isto porque, explica o Presidente da Associação das Colectividades do Concelho de Lisboa (ACCL), Pedro Franco, o planeamento das marchas é um “processo muito trabalhoso" que se inicia mal se fecha o ciclo do projeto anterior.

Quando “se dá a entrega dos prémios de um ano, o sr. Presidente da Câmara divulga qual é o tema do ano seguinte", adianta o responsável, o que implica que as marchas comecem “a ser preparadas em setembro”. 

Sendo também presidente do Júri das Marchas de Lisboa, Pedro Franco explica que, com a necessidade em trazer temas a concurso, o primeiro passo é contactar “os ensaiadores, as pessoas que fazem as letras e as músicas, para então começarem a desenvolver o programa”. Depois, “as coletividades abrem concursos para as pessoas se inscreverem”, sublinhando o líder associativo que, dada a competitividade entre marchas, grande parte dos marchantes transita de um ano para o outro, mas que acontecem casos de “pessoas serem convidadas para outras marchas”, um “pouco como acontece com as contratações dos jogadores de futebol”, comenta.

Findado o primeiro processo, as coletividades começam então a contactar modistas e ateliers de costura para trabalhar nos seus figurinos, sendo que “agarrar nos melhores para fazer a roupa também não é fácil”. Com o processo de contactar profissionais e fornecedores a ocorrer normalmente entre fevereiro e março, é neste período que “é preciso avançar com dinheiro”, explica Pedro Franco.

Marchas Populares
Membros da marcha do Alto do Pina num arraial do seu bairro depois de terem participado no desfile de Santo António, 2013 créditos: PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

O cancelamento das festas em abril significou que várias coletividades tinham feito investimentos que agora já não terão seguimento até porque “as marchas estavam praticamente preparadas”, indica o presidente da ACCL. Apesar do cancelamento, o município sublinhou que o tema deste ano transitará para 2021 para que “o trabalho realizado (arcos, cenografia, figurinos), possa ser rentabilizado no próximo ano”. Ainda assim, Pedro Franco recorda que, por serem associações sem fins lucrativos, algumas coletividades ficaram numa situação delicada por não ter “fundos de maneio”, mesmo não perdendo o seu trabalho.

É aí que entra a Câmara Municipal de Lisboa (CML). Apesar de ser a EGEAC a organizar o certame, é a autarquia da capital a entidade que financia as marchas, estando essa responsabilidade plasmada no regulamento do concurso. E ainda que seja apenas referido que "a comparticipação financeira traduz-se na atribuição de uma quantia monetária a cada Entidade Organizadora, de montante a definir anualmente", o valor que a CML tem concedido é de 30 mil euros a cada uma das 20 marchas a concurso, ou seja, 600 mil euros.

No entanto, por este ano não se realizar o desfile ou o concurso que normalmente ocorre na Altice Arena (este ano estava marcado para o Campo Pequeno) antes da noite de Santo António, a atribuição deste valor estava em dúvida. Este tema foi, inclusive, alvo de um requerimento do Grupo Municipal do PAN a 4 de maio, com o partido a perguntar à Câmara se disponibilizaria os 30 mil euros ou não, ou se atribuiria outras verbas.

Os 30 mil euros por coletividade, sabe-se agora, não vão ser concedidos. No entanto, Pedro Franco adianta que foi conseguida uma solução de recurso junto da vereação da cultura da CML. “Propus uma verba que fosse ao encontro da despesa feita pelas coletividades e a Câmara avançou com 7.500 euros, mais ou menos o que cada uma gastou”, diz, considerando que agora as “coisas estão controladas e as coletividades ficaram mais ou menos satisfeitas”.

O líder associativo avança ainda que, sendo dinheiro investido em material que deverá transitar para as marchas de 2021, esta verba de 7.500 euros deverá ser abatida aos 30 mil euros que poderão ser dados no próximo ano. O valor, porém, já foi mesmo transferido, segundo as coletividades com que o SAPO24 falou.

João Ramos, responsável da Marcha de Alfama, confirma que “há pelo menos um mês” que as “marchas foram ressarcidas”. A sua, porém, também não foi apanhada de surpresa pelo cancelamento. Apesar do Centro Cultural Magalhães Lima já estar a trabalhar desde setembro de 2019 nas festividades deste ano e de toda a logística prévia — das cores dos figurinos às músicas — já estar alinhavada, fevereiro foi recebido com prudência.

“Quando tivemos a notícia do que estava a acontecer na China e logo que a OMS declarou a situação de pandemia, nós no Magalhães [Lima] tivemos a noção de que alguma coisa estava para chegar. Não sabíamos o que era, mas era fácil de calcular que algo com uma magnitude superior à Gripe A estava para vir”, revela. 

Por isso mesmo, o grupo não fez mais aquisições nem concretizou as encomendas que já tinha planeadas dos tecidos a usar e, quando foi declarado Estado de Emergência em Portugal, a gestão foi no sentido de assumir que não ia haver marchas em 2020. “Tínhamos já alguns compromissos financeiros efetuados, mas não eram de avultada monta. Falámos com as pessoas a quem tínhamos encomendado o projeto dos figurinos e com a ensaiadora, dissemos que não era possível dar sequência ao projeto e perceberam o nosso caso”, indica o organizador da marcha de Alfama.

No entanto, apesar dos apoios da CML serem úteis, o João Ramos adianta que, mesmo em condições normais, não são suficientes para realizar uma marcha vencedora, algo secundado por Pedro Franco, que fala em valores despendidos entre os 40 e os 50 mil euros entre as coletividades mais competitivas.

A obtenção do dinheiro que não é concedido pela autarquia faz-se através das Juntas de Freguesia ou de atividades de angariação. Por serem catalisadoras das relações associativas no seio das coletividades, o cancelamento das marchas também está a fazer mossa nesse aspeto.

“A marcha constitui sempre um momento alto da participação da comunidade do Magalhães [Lima], nomeadamente na frequência que significa para [a coletividade], nas vendas de bar, na aquisição de produtos que colocamos à disponibilidade das pessoas, nos donativos muito generosos das habitantes e comerciantes de Alfama. Tudo isso são verbas que vão fazer falta para fazer face ao resto do ano”, lamenta João Ramos.

O sentimento é ecoado por Pedro Jesus, recordando o coordenador da marcha de Alto do Pina que a proibição dos arraiais populares também traz problemas de ordem financeira. “Com o facto de não haver marchas, houve, obviamente, um decréscimo de receita. Embora o município tenha colmatado parte desse decréscimo, o fim da atividade, ou, pelo menos, a cessão da atividade associativa nestes meses, traz problemas para as próprias coletividades, porque não são estabelecimentos e sim associações sem fins lucrativos que vivem das receitas dos associados”, revela.

Para além disso, o responsável diz que os 7.500 euros concedidos pela CML satisfizeram as necessidades da sua coletividade — porque também não tinha ainda adiantado muito trabalho —, mas alerta que há “casos de outras marchas onde [esse valor] não foi suficiente, porque já estavam mais adiantadas na conceção do próprio figurino”.

Marchas Populares
Preparativos da marcha de Alfama no dia do desfile de Santo António, no Bairro de Alfama em Lisboa, 2016. créditos: JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Um Santo António comemorado em espírito, sem arraiais nem festas

Apesar do cancelamento do desfile na noite de Santo António, houve representantes das marchas a propor que esta se realizasse sem público ou que ocorresse noutra altura do ano em que já fosse possível organizá-la. Alto do Pina foi um desses casos.

Na "conceção" que Pedro Jesus e o Ginásio do Alto do Pina têm do "que é a própria Lisboa”, as marchas vão para além da celebração do Santo António, sendo também alimentadas "por outros momentos que a cidade já teve". Como tal, a proposta da sua marcha foi de organizar “eventos" noutra data que não a de 12 de junho, "onde houvesse uma participação das marchas populares, fosse a concurso, fosse apenas uma exibição, para dar algum ânimo à cidade”.

A ideia, porém, não colheu grande entusiasmo noutros organizadores. “Nós entendemos que as Marchas são de Santo António, ou seja, ou se fazem no Santo António, ou não se fazem. Isto custa a todos, mas é mesmo assim”, aponta João Ramos, considerando o responsável da marcha de Alfama que seria o mesmo que comemorar a Páscoa noutra altura do ano porque não se pôde celebrar durante o Estado de Emergência.

Quanto à possibilidade de se fazer uma marcha com a Avenida da Liberdade fechada, Pedro Franco defende que não só a questão dos ensaios neste momento continuaria a ser problemática devido aos ajuntamentos, como diz que “há espetáculos que sem público não têm a mesma graça”. “Imagine, o que era estar a descer a Avenida sem ninguém, o impacto que tinham as marchas de Lisboa”, sugere o presidente da ACCL.

Um aspeto no qual as figuras entrevistadas pelo SAPO24 estão de todas de acordo é com a decisão precoce do município em ter cancelado o evento, considerando que foi prudente e não gerou expectativas. “Na altura, tudo era importante menos as marchas, é preciso ter noção da realidade”, diz João Ramos, considerando que ainda hoje “não há condições objetivas para fazer um evento” que reúne quase 100 mil pessoas.

Para além disso, o responsável da marcha de Alfama disse também preferir um cancelamento já definido à incerteza de manter um grupo ativo sem saber quando vai atuar. “Para fazermos a marcha, demoramos, no mínimo, um mês e meio a ensaiar. Não podemos andar a ensaiar as pessoas sem sabermos se atuar ou não, isso é que esmorece completamente o ânimo”, defende João Ramos.

O que é certo é que não só o Centro Cultural Magalhães Lima não vai fazer a marcha, como não vai sequer realizar qualquer tipo de evento presencial. “As pessoas gostam tanto disto que depois podemos perder a mão. Encontramo-nos 20, mas depois somos 200 ou 300. Não vale a pena pôr-nos a jeito”, defende o organizador. Também o Ginásio do Alto do Pina vai conter-se nas celebrações. “Não só respeitamos o decreto de fim de maio, como também a própria posição do município de Lisboa”, diz Pedro Jesus, colocando o foco em “salvaguardar a saúde de todos”, para depois poder “pensar como vamos remediar isto tudo”.

Ambos os responsáveis dizem que os seus grupos se vão pautar por celebrações simbólicas, nomeadamente através da partilha de publicações e de transmissões de eventos de outros anos nas suas redes sociais, o que, aliás, tem sido a posição de grande parte das marchas lisboetas.

Sem marchas nesta noite, em 2021 vai haver empenho “até à exaustão”

Marchas, agora só para o ano, mas os organizadores recusam a ideia de que esta paragem vai afetar o espírito das coletividades. “Quem gosta das marchas, não vai desistir pelo facto deste ano não ter conseguido descer a Avenida [da Liberdade]”, argumenta João Ramos arriscando dizer que as marchas “estão 'loucas' que chegue 2021”.

“Nos bairros populares, a comunidade vive as festas de Lisboa de forma intensa. Não haver [festas] traz alguma tristeza. Por isso, é natural que para o ano tentemos festejar estes momentos com muito maior intensidade”, secunda Pedro Jesus, dizendo acreditar que para o ano todos estejam a “organizar um grande evento, que pelo menos dê ânimo à cidade”.

Já Pedro Franco diz-se convencido que, “se a pandemia permitir, as pessoas vão apostar forte novamente” nas marchas e a “luta vai ser renhida”. Conhecendo o movimento associativo, o presidente da ACCL diz que este é feito de “gente que não vira a cara” nem “atira a toalha ao chão”. “Não vão esmorecer, pelo contrário, vão se empenhar, até à exaustão”, promete.

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