Francisco Mota Saraiva tem um livro publicado, venceu dois prémios e há uma nova obra a caminho das livrarias. Nascido em Coimbra, em 1988, e licenciado em Direito, com um mestrado em Direito e Gestão, Francisco Mota Saraiva tem trabalhado como jurista e consultor, mas a literatura ocupa o lugar de um segundo emprego.
Nesse mundo paralelo que ocupa a sua vida, tem passado por experiências que consolidam a vontade em escrever mais e mais: em 2021, foi-lhe concedida uma bolsa de criação literária, pela Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, e, em 2023, uma residência literária pela Fundação Eça de Queiroz. Sobre estas experiências, conta ao SAPO24 que a grande mais-valia foi ter conseguido perceber "aquilo que é estar durante um longo período dedicado exclusivamente à escrita".
Com livros na gaveta, o autor confessa estar ainda a aproveitar os primeiros meses de publicação do seu primeiro livro, vencedor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2023, publicado em setembro deste ano — mas já de olho na próxima publicação em 2025, desta vez da obra vencedora do Prémio Saramago 2024.
Esta é uma conversa sobre livros, perseverança e as rejeições de editoras até chegar ao sucesso e desafios da entrada no mundo da literatura. Afinal, para quem escreve há sempre a "necessidade de escrever, de ter uma voz — ou centenas de vozes".
Como é que reagiu ao saber que venceu o Prémio Saramago 2024?
Tem sido a pergunta que mais pessoas me têm feito. Efetivamente foi com uma enorme alegria que recebi a notícia. Confesso que sempre tive essa ambição, porque o Prémio Saramago é uma galeria muito exclusiva de autores. No entanto, não esperava que isso acontecesse e fui apanhado de surpresa. Estava completamente desprevenido quando recebi a notícia e fiquei verdadeiramente feliz, mas também, ao mesmo tempo, com um certo sentimento de medo, se assim podemos dizer, pela responsabilidade de fazer parte dessa galeria tão exclusiva e pela necessidade que tenho de honrar o prémio, os anteriores vencedores e o próprio nome de José Saramago.
"A verdade é que as grandes histórias já foram contadas e, portanto, aquilo que eu acho que um escritor contemporâneo faz, muitas vezes, é recontar essas mesmas histórias"
O facto de estar associado a José Saramago, o nosso único Nobel, traz uma responsabilidade acrescida?
Sem dúvida, e isso já me tinha acontecido quando ganhei o Prémio Agustina Bessa-Luís. Quando o nosso nome fica de alguma forma associado a escritores com uma dimensão tão relevante para a literatura portuguesa, obviamente que sentimos essa responsabilidade acrescida. Mas tem um lado muito positivo, que é sermos reconhecidos pelos demais como estando ligados a nomes de escritores tão grandes.
O que podem esperar os leitores deste novo livro, "Morramos ao Menos no Porto"?
O meu objetivo nunca foi propriamente contar uma história. A verdade é que as grandes histórias já foram contadas e, portanto, aquilo que eu acho que um escritor contemporâneo faz, muitas vezes, é recontar essas mesmas histórias, apurando seja o lado estético, seja a profundidade das personagens. No entanto, acho que ainda assim eu pendurei o livro numa grande história de amor, numa história de amor que se prolonga para lá da vida. E depois existem temas paralelos que vão sendo abordados, como questões mais relacionadas com o aborto, a pedofilia, o desespero. A verdade é que há sempre algumas referências que ajudam a enriquecer o livro, mas, para todos os efeitos, mais importante do que a história é a densidade emocional das personagens que a povoam.
Estava a dizer que as histórias já estão todas contadas. Todos esses temas que referiu são muito atuais, mesmo nas notícias. É também uma forma de olhar para a atualidade, através da ficção?
Sem dúvida. Obviamente que hoje em dia há temas que são mais atuais e mais prementes, mas ao mesmo tempo também acredito que esses temas — seja a ideia de violência, de desespero, de infelicidade — são constantes na humanidade. A ficção contribui muito para que possamos compreender melhor o outro, ler o outro, ler através do outro. Acho que a literatura nos permite fazer esse trabalho. No próprio discurso da entrega do Prémio Saramago fiz questão de referir isso, essa importância que existe em ler. O próprio Gonçalo M. Tavares, nessa circunstância, também tinha referido a importância da generosidade que é alguém ler o outro. Quando fazemos esse trabalho, estamos mais próximos de encontrar compreensão e de nos ligarmos entre todos em sociedade e se calhar viver um bocadinho mais em paz.
"Tenho de reconhecer que é uma escrita mais lírica e talvez mais fragmentada, como se costuma dizer. As influências são várias, acho que qualquer escritor é produto de tudo aquilo que leu"
O seu primeiro livro, "Aqui Onde Canto e Ardo", tem um estilo muito próprio de escrita. Nota-se muito isso nas frases, na forma de construir parágrafos, mesmo na pontuação. Quais são as suas influências?
Tenho de reconhecer que é uma escrita mais lírica e talvez mais fragmentada, como se costuma dizer. As influências são várias, acho que qualquer escritor é produto de tudo aquilo que leu — e eu aqui tenho um sem número de escritores, seja o próprio Saramago e a Agustina, que têm estilos tão diferentes. Venci os prémios e são escritores que sempre marcaram a minha leitura. António Lobo Antunes, Carlos de Oliveira, Maria Velho da Costa, mesmo os clássicos típicos como Ferreira de Castro, Eça de Queiroz, depois também Gabriel García Márquez, Roberto Bolaño, [Louis-Ferdinand] Céline... E ultimamente tenho descoberto muitas escritoras, muitas delas sempre existiram e simplesmente não tiveram a possibilidade de chegar à publicação como os homens. No tempo em que eu estudei, bastava olharmos para os planos curriculares nas escolas e verificarmos que não nos eram apresentadas tantas escritoras e, hoje em dia, publica-se mais no feminino, quer sejam pessoas como Natalia Ginzburg, de quem gosto muito, ou novas escritoras como Layla Martínez ou Leila Slimani. E tem-se visto novas edições, por exemplo, de Virginia Woolf, da Clarice Lispector. As mulheres têm de facto uma voz muito poderosa e até mais crua, mais dura do que a voz de muitos escritores, e para mim tem sido uma agradável surpresa.
Uma crueza que na voz escrita pode ser assumida e que em muitos tempos não podia ser dita em voz alta.
Sim, sim. É isso mesmo. Foi-nos sempre muito dado os escritores e esquecemo-nos das escritoras que têm uma voz muito poderosa. Tem inclusivamente um sentido de revolta maior e carregam mais dores, mais violências, para a sua própria escrita. E também nos permitem conhecer outros pontos de vista que estão inevitavelmente associados ao feminino, como a possibilidade única de uma mulher ser mãe. Esse ponto de vista está carregado de simbolismos e de sentidos para os quais um homem não está desperto como uma mulher.
Este segundo livro, "Morramos ao Menos no porto", sai em 2025. A forma de escrita vai ser semelhante ou é um estilo completamente diferente?
Quem teve oportunidade de ler o "Aqui Onde Canto e Ardo" e tiver depois oportunidade de ler o "Morramos ao Menos no Porto" vai reconhecer muito facilmente o mesmo estilo adotado por mim, o mesmo tipo de voz. Mas o "Aqui Onde Canto e Ardo" é um livro relativamente mais fragmentado, enquanto o "Morramos ao Menos no Porto" é mais linear, com uma história mais consolidada, não tão repartida. O tipo de lirismo é muito semelhante e espero que assim os leitores também o possam reconhecer. A verdade é que quando os escritores se afastam muito daquilo que são as vozes que lhes são mais habituais as coisas têm tendência para não correr tão bem.
Há pouco falou no Gonçalo M. Tavares. Também é uma referência para si?
Sim, sem dúvida. É uma enorme referência e eu tive o privilégio de tê-lo a apresentar o meu primeiro livro. Se tivermos de pensar numa das vozes mais emblemáticas da literatura portuguesa, é o Gonçalo M. Tavares. O Gonçalo refere-se à Agustina como uma escritora a que voltaremos sempre e, no meu caso, eu tenho muito isso com ele. É um escritor a quem voltarei sempre. É dotado de um génio para a literatura muito pouco habitual.
E um escritor também cresce a olhar para as suas referências.
Sim, sim. Acho que, de alguma forma, devemos afastar-nos dessas referências, naquilo que estamos a construir, para termos o nosso próprio tom, mas é inevitável voltarmos sempre a essas referências — são elas que nos fazem crescer. E é muito importante ler mais e ler diferente. Qualquer escritor sentirá isso.
"Este é um livro que eu já tinha na gaveta há alguns anos e surgiu a oportunidade de me candidatar com ele ao Prémio José Saramago"
No primeiro livro temos uma viagem, cruza vários países, várias cidades. Neste temos um porto... voltamos às viagens?
Temos um porto que não implica a cidade do Porto e que surge a partir das Cartas a Lucílio, de Séneca, que diz que se vivemos no meio das vagas, morramos ao menos no porto. O título dá-nos uma pista para a dimensão emocional que nós, seres humanos, temos quando comparamos a nossa vida entre as vagas ou a nossa vida ou a nossa morte no porto, no lugar mais abrigado, de ampara, quase de asilo. Essa é a pista que posso deslindar. Naquilo que escrevo não me importa propriamente a localização geográfica ou temporal, mas obviamente que as pessoas podem reconhecer um lugar contemporâneo. Não vou dizer uma distopia, mas quase uma distopia em que as pessoas vão reconhecer o seu lugar do dia a dia. Não deixa de ser uma viagem para o leitor, uma viagem muito pelo que são as nossas casas, os lugares das nossas grandes cidades. É sobretudo uma viagem muito pelo nosso interior e por aquilo que está tão próximo de nós. E pode ser o que se passa na loja que temos por baixo do nosso prédio, naquilo que existe na casa dos nossos vizinhos... Acho que as pessoas poderão facilmente viajar dentro de si nos lugares que conhecem e que lhes são familiares.
Qual foi o processo de escrita desta obra?
Este é um livro que eu já tinha na gaveta há alguns anos e surgiu a oportunidade de me candidatar com ele ao Prémio José Saramago. No entanto, é uma longa história. Eu costumo dizer que tenho dois trabalhos: uma atividade profissional que não tem nada a ver com a escrita e depois tenho este trabalho de escrita. O livro foi praticamente terminado por altura da pandemia e acho que os leitores também vão encontrar algumas referências — mesmo não sendo diretas — e vão sentir-se próximos de sensações que tivemos nesses tempos, nomeadamente a questão da claustrofobia que alguns sentiram durante esse período. Foi um livro que me foi muito caro, porque a construção das personagens é muito profunda. Não sei exatamente como é que os leitores irão olhar para a relação entre elas, mas foi um processo longo e demorado. Estive mais de um ano de volta deste livro, com todo o sacrifício que implica conjugar a escrita com a minha atividade profissional.
"Quando conseguimos estar plenamente dedicados a uma só atividade tornamo-nos mais vigilantes, mais alerta, estamos mais dedicados"
Como é que se conjugam estes dois mundos?
Acho que acabo por fazer isto como qualquer pessoa que, para sobreviver, tem de ter dois empregos. Eu encaro as coisas um pouco desta maneira, como se tivesse dois empregos que obrigam a uma vigilância constante, a uma dedicação constante. Essas duas atividades acarretam um nível de sacrifício e de esforço maior. Mas o que acontece é que, muitas vezes, tenho quase de ter uma dupla personalidade. Inevitavelmente há uma área que exige muito mais criatividade da minha parte e isso nunca se desliga. Qualquer pessoa que esteja neste mundo da literatura sente isto: temos sempre os nossos sentidos muito despertos para tudo aquilo que nos rodeia, para o que observamos. E portanto é como se estivéssemos sempre mergulhados na atividade de escrita. Depois, obviamente, existe todo o processo em que nos sentamos à secretária a escrever, mas há todo um trabalho prévio. Há um trabalho de leitura — lemos os outros, observamos, há sempre uma frase que escutamos, uma notícia que lemos, um filme que vemos ou até mesmo uma relação laboral. Portanto nunca desligamos dessa atividade da escrita.
Acha que era mais fácil se só escrevesse? Ou a sua outra profissão também permite que encontre gatilhos para a escrita?
A verdade é que quando conseguimos estar plenamente dedicados a uma só atividade tornamo-nos mais vigilantes, mais alerta, estamos mais dedicados. Isso obviamente pode ter resultados que sejam mais de acordo com o que gostaríamos que acontecesse. E isso inclusivamente aconteceu-me em 2021, quando ganhei uma bolsa literária, e depois em 2024, quando tive uma residência literária. Nesse tempo eu senti aquilo que é estar durante um longo período dedicado exclusivamente à escrita. No entanto, acho que uma coisa não fica necessariamente prejudicada pela outra. Quando temos mais do que um emprego, se calhar também trazemos mais coisas para a nossa escrita.
Como é que chegou à bolsa e à residência?
Têm processos mais ou menos semelhantes. As pessoas candidatam-se com uma amostragem de trabalhos que já tenham feito ou que estejam a fazer e que possam ser considerados relevantes — são depois apreciados por um júri. Geralmente temos um projeto de escrita para esse período e inclusivamente entregamos uma amostra daquilo que estamos a fazer: pode ser um capítulo, um conjunto de ideias. O que tiver mais pés para andar acaba por ser escolhido e eu tive essa felicidade. Na altura em que recebi estas bolsas, para mim foi uma grande alegria, porque geralmente já são autores relativamente consagrados ou com obra publicada que tipicamente vencem e são escolhidos. No meu caso isso não era verdade, tanto quando recebi a primeira bolsa da Direção-Geral do Livro como quando recebi da Fundação Eça de Queiroz. Não tinha obra publicada, por isso foi quase como um bálsamo que me fez acreditar que poderia haver algo na minha escrita digno no futuro de ser publicado.
Como foi a experiência na Fundação Eça de Queiroz? No fundo esteve num espaço bastante ligado a um dos nossos grandes escritores.
Foi qualquer coisa de muito diferente. Na primeira bolsa, pude estar em casa ou nos sítios em que quisesse escrever. Foi na altura da pandemia, a nossa capacidade de circulação também era menor. Neste caso da residência, os autores ficam alojados na própria Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, que foi uma casa herdada pela mulher do Eça de Queiroz, onde ele passou pouco tempo, mas pela qual tinha um grande apreço e onde hoje está a fundação, com instalações para receber os autores num sítio absolutamente idílico, com uma paisagem a perder de vista, rodeada de vinhas, junto ao Douro. É uma experiência quase monástica, porque estamos ali isolados. Eu tive a possibilidade de ter, aos fins-de-semana, a visita da minha família e amigos, o que também ajuda. O isolamento total e absoluto não é necessariamente bom, porque estamos mesmo mergulhados no nosso processo de escrita. Todas as nossas atividades, seja almoçar, jantar, são feitas de uma forma muito solitária, o que tem a vantagem de termos uma concentração e uma absorção muito maior, seja pelo que estamos a ler, seja pelos materiais de escrita. No entanto, esse isolamento também pode ser prejudicial, porque pode distrair-nos do que estamos a escrever e levar-nos para zonas mais perigosas da escrita. Mas foi uma experiência irrepetível, diria.
O que escreveu na residência vai ser publicado?
Está na gaveta, embora esteja praticamente terminado. Quando venci o Prémio Agustina Bessa-Luís, foi publicado o meu primeiro livro, "Aqui Onde Canto e Ardo", que está neste momento a respirar. Agora venci o Prémio José Saramago com outro livro que ainda nem sequer começou a respirar, digamos assim, portanto é uma altura de aproveitar este período e depois no futuro pensaremos nisso. O importante é continuar a trabalhar e a escrever como tenho feito.
"Houve muitas alturas em que os meus manuscritos foram negados ou em que as próprias editoras disseram que tinham potencial, mas que efetivamente não se enquadravam no plano editorial ou que por circunstâncias financeiras não seria possível"
Já falou um bocadinho disso, mas ganhou o Prémio Agustina Bessa-Luís, agora outro prémio. Dois livros, dois prémios... qual é o segredo?
[Risos] Não existe segredo. Simplesmente tudo isto parte de muito trabalho, a verdade é essa. Não estou a escrever de forma profissional, porque não vivo disso, mas estou a escrever com um sentido de responsabilidade muito grande há muitos anos, há mais de dez. Obviamente houve muitas alturas em que os meus manuscritos foram negados ou em que as próprias editoras disseram que tinham potencial, mas que efetivamente não se enquadravam no plano editorial ou que por circunstâncias financeiras não seria possível. Isso vai-nos desgastando um pouco e agora, num espaço tão curto de tempo, em dois anos, poder vencer dois prémios... eu próprio ainda não tenho bem noção do que isto significa. Aquilo que eu acho que é essencial para cada pessoa que se aventure no mundo da literatura é sentir essa necessidade de escrever, ter uma voz — ou centenas de vozes — dentro de si que possa alimentar e trabalhar muito e de forma dedicada, porque ninguém se senta à secretária e diz "vou escrever uma hora por dia, nos próximos dez dias e vou conseguir fazer um livro". É muito mais do que isso. Neste momento não sei exatamente o que pensar sobre o facto de ter vencido dois prémios, mas acho que existe muita expectativa sobre aquilo que é a minha capacidade narrativa e espero estar à altura disso.
Tocou na questão da rejeição pelas editoras quando se apresenta uma obra. Como é que se lida com isso?
É difícil lidar com a rejeição. A maior parte das pessoas terá essa experiência, não apenas quem trabalha no mundo das artes. Mas muitas vezes nós ficamos desalentados. Senti-me muitas vezes infeliz com essas respostas que recebia, porque assim como recebia respostas negativas também recebia algumas respostas positivas, no sentido em que me diziam "é bom, mas não temos espaço para publicar, não temos dinheiro, não se enquadra no nosso projeto editorial". Ao mesmo tempo eu também sabia que aquilo que estava a fazer tinha qualidade. Mas não conseguir ser publicado também representava um grande desalento. A forma que eu encontrei de ultrapassar foi continuar a escrever, porque mais importante do que publicar é a necessidade intrínseca que eu tenho de escrever constantemente. É quase como uma atividade para expiar todos os fantasmas que tenho dentro. Essa necessidade é absoluta e posso dizer que nunca desisti. Continuei sempre, sempre, sempre a trabalhar e a escrever. Isso ajudou-me e acabei por ser reconhecido por isso.
"Existem muitas edições de autor, mas eu não acredito na literatura sob esse ponto de vista"
Na prática não foi propriamente um não, foi um agora não.
Sim, é um agora não, mas não sabemos se esse agora não se prolonga ad eternum. Acho que só tenho de estar agradecido àqueles que tiveram a generosidade para me ler. Nesse aspecto é muito importante que existam instituições ou entidades como é o caso da Fundação Círculo de Leitores, da Porto Editora e da Fundação José Saramago, no Prémio José Saramago, ou da Estoril Sol, no caso do Prémio Agustina Bessa-Luís. São entidades que estão disponíveis para alimentar um processo de candidaturas, de uma série de escritores, muitos deles desconhecidos, sem qualquer obra publicada, e terem essa generosidade e essa dedicação para continuarem a promover novos autores. Muitas vezes as próprias editoras também têm a sua agenda e não estão disponíveis para apostar num novo autor. Provavelmente é mais seguro — e eu compreendo isso — que um autor estrangeiro que já foi objeto de admiração lá fora possa ser traduzido para Portugal, esperando obter-se os mesmos resultados. É difícil apostar-se num novo autor, que ainda por cima pode ter um voz relativamente diferente, e tentar avaliar a capacidade disso funcionar em Portugal.
Mas estamos numa fase em que cada vez mais se veem novos escritores em Portugal. Mesmo assim, também se fala muito das edições de autor. Pensou nisso quando recebeu as rejeições?
Isso para mim nunca esteve em cima da mesa. Obviamente que existem muitas edições de autor, mas eu não acredito na literatura sob esse ponto de vista. Claro que é uma arte e deveria viver por si. Se calhar no passado tivemos autores que hoje temos como consagrados e que partiram da autopublicação, mas a partir do momento em que um livro está feito tem de sair um pouco das mãos do próprio escritor. Não vou dizer que tem de ser validado por alguém, mas tem de existir um conjunto de entidades independentes — apesar do interesse económico que possam ter nisso — que possam olhar para o livro de outra forma, que verifiquem com toda a sua experiência e que possam dizer se ele é digno de ser publicado. Hoje em dia provavelmente publica-se demasiado em Portugal. A par daquilo que já se publica em demasia existem estas edições de autor e, de alguma forma, o leitor também tem de ser guiado. Não estou a dizer que tem de ser guiado naquilo que seria a sua escolha de leitura, mas tem de existir um processo mais quase físico além desse processo artístico, que permita colocar o livro no circuito em que tem de ser colocado, que é o circuito dos leitores.
Disse que se publica em demasia. Quais as consequências disso?
Aqui tomo muito a minha experiência enquanto leitor. Quando entramos nas livrarias, ou até mesmo no online, somos inundados por livros de boa qualidade, de má qualidade. Há livros que estão muito pouco tempo nas estantes das livrarias, nos escaparates. Estão um, dois, três meses, e o livro é completamente arredado, colocado para o lado, porque tem de entrar uma novidade. E estamos sempre a falar da novidade, do novo, e não temos tempo sequer para ver se isso afinal é mesmo uma novidade. Os livros precisam de tempo para respirar, como toda a arte. Não podemos, de um dia para o outro, esperar fazer essa análise. Há agora um livro que quero ler, mas depois daqui a seis meses haverá outro. E provavelmente quando eu for à procura desse livro já não o vou encontrar visível. Mesmo que possa pesquisar na base de dados, não é a mesma coisa, porque esse contacto físico com os livros também é importante. Vivemos numa sociedade em que tudo tem de ser novo, tem de ser rápido, tem de ser consumido muito rapidamente para depois ser deitado fora. E acho que a arte em geral, e os livros em particular, não se coaduna com esta forma de atuar por parte do mercado livreiro e editorial.
"Se o caminho e se o canal para termos mais jovens a ler, mais jovens próximos da literatura, for o TikTok, então acho que é uma ideia excelente"
Neste contexto da rapidez, temos assistido a um fenómeno que se nota também em Portugal. Passámos de uma altura em que jovens não liam tanto para uma altura em que os livros saltam das estantes para as redes sociais, em particular para o TikTok, e parece que começa a existir uma nova era de leitores. Como vê esta mudança?
Não sou propriamente um frequentador de redes sociais. Estou perfeitamente a par destes fenómenos, nomeadamente relacionados com o TikTok, mas não tenho muita noção daquilo que é promovido nessas redes, se são coisas com qualidade ou se não são. E, mais do que isso, se efetivamente é esse o caminho que queremos seguir. Mas parece-me sempre fantástico a possibilidade de os jovens lerem mais. Se o caminho e se o canal para termos mais jovens a ler, mais jovens próximos da literatura, for o TikTok, então acho que é uma ideia excelente. Mas tenho sempre alguma dificuldade em acreditar que determinados leitores que leem livros com baixa qualidade, digamos assim, possam depois evoluir para livros com outro tipo de qualidade, até pela experiência de outras pessoas que conheço à minha volta. Agora, o facto de multiplicarmos os canais que existem, para que mais pessoas possam ter acesso à leitura ou para despertar a curiosidade pela leitura, parece-me uma excelente ideia. No final do século XIX e no século XX os escritores iam publicando pequenos pedaços de uma história num jornal, todas as semanas, e depois ao final de algum tempo tínhamos um livro completo. Era o canal que existia antigamente, se o canal de hoje em dia é o TikTok ou outra rede social qualquer, então que seja. Desde que isso desperte para a literatura já é uma mais-valia.
Considerando todo o percurso que tem feito, entre obras na gaveta, prémios que ganha, livros publicados... que conselhos deixa a quem se quer aventurar neste mundo da literatura?
Não há um grande conselho. Simplesmente acho que tem de ser algo intrínseco. Quem quer escrever tem de perceber, primeiro, se isso é uma necessidade absoluta. Para mim é uma necessidade absoluta e a escrita vive por si só, independentemente da publicação e dos prémios. Depois também é necessário perceber se existe essa voz de que já falei e se podemos trabalhá-la de alguma maneira. E também ter a disponibilidade mental, mesmo que o tempo nem sempre seja aquele que nós queremos, para nos dedicarmos, esforçarmos e trabalharmos muito. São muitas horas a escrever, são muitas horas a observar e são muitas horas a ler. Quem não tiver interesse ou não tiver disponibilidade para isto dificilmente conseguirá escrever. Isso tem de ser um ponto de partida e tem de ser um ponto de chegada. Se for só uma mera passagem acho difícil que alguém se consiga aventurar por aí.
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